O policial que virou educador após presenciar violência contra professores em 1988 e protestou ao lado deles em 2015


Em 1988, como policial, Sebastião Santarosa viu professores feridos por cavalaria da PM. Em 2015, ao lado de educadores, foi ferido por ex-colegas de farda. Especialistas avaliam comportamento do Estado em manifestações. O policial que virou educador após presenciar violência contra professores
No dia 29 de abril de 2015, enquanto via policiais lançarem bombas de efeito moral e atirarem balas de borracha contra manifestantes na Praça Nossa Senhora da Salete, no Centro Cívico, em Curitiba, a memória do professor Sebastião Donizete Santarosa o transportou de volta para o dia 30 de agosto de 1988.
Naquele ano, uma manifestação de professores, similar a de 2015, foi repreendida com violência pela cavalaria da Polícia Militar do Paraná (PM-PR) em um episódio marcante da relação entre professores e o então governador Álvaro Dias.
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Em 1988, Sebastião era policial militar. Ele trabalhava no setor administrativo do Centro de Processamento de Dados da Polícia Militar do Paraná (PM-PR) e viu os colegas serem convocados para reforçar o policiamento na manifestação.
Ele só soube do confronto quando os PMs voltaram para o setor e relataram como tinha sido a ação. O que ouviu foi decisivo para “mudar de lado”.
“Voltaram alegres por terem agredido professores. Naquele dia, desisti de ser policial”, lembra.
Sebastião Donizete Santarosa dentro de sala de aula
Arquivo Pessoal
Depois daquele dia, ainda na corporação, Sebastião passou a acompanhar as reivindicações dos professores para entender o que eles queriam. Foi o primeiro passo que deu para, anos depois, se tornar educador.
“Pensei: Não é desse lado que eu queria ficar, é do outro. Do outro lado, a gente pode talvez construir alguma coisa mais positiva do que isso”, conta.
➡️ Esta é a primeira reportagem da série “Além do 29 de abril”, do g1 Paraná, que relembra o confronto de educadores e policiais no Centro Cívico de Curitiba, em 2015.
De militar a professor
Em 1988, manifestação de professores foi repreendida com violência pela cavalaria da Polícia Militar do Paraná
RPC
Quase 27 anos depois da manifestação de 1988, no ato de 29 de abril de 2015, Sebastião já não era mais PM.
Como professor da rede estadual de ensino, ele participou da manifestação que era contrária a cortes em benefícios do funcionalismo público apresentados pelo então governador do Paraná, Beto Richa. O ato, marcado por violência, completa 10 anos nesta terça-feira (29).
Do outro lado, Sebastião viu um trecho da história se repetir.
Com ânimos alterados, o que começou como manifestação pacífica, pouco a pouco, escalou para um novo confronto que, assim como o de 1988, ficou marcado na história do Paraná.
A melhor forma de descrever é: cenário de guerra, de violência muito absurda, violência totalmente desproporcional. Em 2015, quando a gente achava que a democracia já estava consolidada, a gente achava que a polícia estava a serviço da proteção dos trabalhadores, você tem a polícia agredindo, e agredindo com extrema violência, educadores. Era um povo que estava fazendo uma manifestação legítima e foi agredido com uma força totalmente desproporcional.
Apesar de ter tido algumas similaridades, Sebastião diz ter notado cenários diferentes entre os dois confrontos.
A impressão que ele guarda daquele dia 29 de abril é que, apesar da violência empregada contra os manifestantes, os policiais “estavam cumprindo ordens”.
Tropa de choque ataca servidores públicos na Praça Nossa Senhora de Salete
Giuliano Gomes/PR Press
Foram cerca de duas horas de conflito. PMs usaram bombas de efeito moral, spray de pimenta, tiros de balas de borracha e jatos de canhões de água no confronto, enquanto manifestantes retrucavam com pedras e outros itens que achavam no local.
À época, a Prefeitura de Curitiba informou que 223 pessoas ficaram feridas, entre servidores públicos, apoiadores e policiais. O prédio do poder público municipal, que fica na região onde o confronto aconteceu, virou um centro de atendimento para aqueles que se machucaram.
Durante a confusão, uma bomba deixou um ferimento na mão de Sebastião. Para ele, porém, as piores cicatrizes são as emocionais.
“Talvez, naquela época, eu fosse mais ingênuo. Talvez eu achasse que seria possível a gente fazer um debate democrático. Eu achava que havia alguma sensibilidade por parte das lideranças políticas em favor da educação. Talvez eu acreditasse que a educação pudesse de fato ser prioridade. Essa descrença é muito forte”, lamenta.
Histórico: conflitos entre educadores e governo não são novidade no Paraná
29 de abril de 2015: Manifestação de servidores públicos termina com bombas de gás lacrimogêneo e tiros de bala de borracha
RPC
Os embates entre educadores e o Estado não são novidade no Paraná.
Entre 1988, quando houve o episódio da cavalaria, e hoje, existiram outros conflitos durante reivindicações dos docentes por melhores condições de trabalho.
O mais recente aconteceu em 3 de junho de 2024, no atual governo Ratinho Junior (PSD), quando professores, servidores e alunos da rede estadual forçaram a entrada na Assembleia Legislativa do Paraná durante uma mobilização contrária ao projeto de lei que terceirizou a gestão administrativa de 204 colégios públicos. Bombas de gás lacrimogêneo foram lançadas e a confusão deixou três pessoas feridas.
De acordo com o pesquisador Rodrigo Diego de Souza, que estuda políticas curriculares, desde 1988 o Paraná apresenta um histórico de disputas entre os professores e governos que envolvem diferentes contextos.
Em um trabalho publicado em 2021, o pesquisador analisou manchetes de jornais e idenitificou outros conflitos na história do Paraná – não necessariamente com violência física, mas que também marcaram lutas da categoria.
Entre 1988 e 2015, por exemplo, houve conflitos nos anos 2000, 2004 e 2014, conforme uma pesquisa realizada por Rodrigo que discute as repreensões de educadores paranaenses ao longo dos anos.
Confira registros de conflitos entre professores e o Governo do Paraná, de acordo com a pesquisa de Rodrigo:
1998 – governo Álvaro Dias
2000 – governo Jaime Lerner
2004 – governo Roberto Requião
2014 – governo Beto Richa
2015 – governo Beto Richa
2024 – governo Ratinho Júnior
Para o pesquisador, os conflitos, em maior e menor escala, apontam que os “professores do Paraná convivem imersos em ataques políticos aos seus direitos trabalhistas e que também desfiguram aquilo que os caracterizam como docentes, ou seja, deixam de ser professores e passam a ser baderneiros, segundo os governantes”.
Para Gisele Masson, pesquisadora de políticas educacionais, conflitos tendem a acontecer em governos menos abertos ao diálogo e com menos disposição à negociação.
“É uma estratégia dos governos, em geral, quando têm medidas que são antissociais do ponto de vista das políticas públicas sociais. O Estado fortalece o seu aparato repressivo, como uma forma de impedir que as mobilizações pelos direitos sociais aconteçam”, explica.
Segundo Souza, apesar de os confrontos mais violentos serem os que mais chamam a atenção, normalmente não são os únicos vividos pela docência, que também trava lutas invisíveis.
“Atualmente, não se dão [confrontos] apenas com a força bélica, como ocorreu no 29 de abril, mas também [são ataques] à liberdade de cátedra, ao conhecimento escolar, aos professores como sujeitos de conhecimento e à escola como lugar do conhecimento”, defende.
O ponto de vista é reforçado por Masson, que, de forma geral, enxerga um cenário instável no Paraná para as demandas da educação e, por isso, acredita que a possibilidade de novos confrontos físicos e violentos não está esgotada.
“Não me surpreenderia se tivéssemos novos massacres, porque essa lição da capacidade repressiva do Estado é uma lição que se repete na história. A gente só precisa olhar para trás”, afirma a pesquisadora.
29 de abril de 2015: ‘mini’ conflitos anteriores formaram ‘panela de pressão’
A crise que resultou no 29 de abril começou a ser formada bem antes, em fevereiro, quando os servidores estaduais entraram em greve.
Na época, a categoria se mobilizava contra um pacote de medidas proposto pelo Governo do Paraná na Assembleia Legislativa do Paraná (Alep) e que previa cortes em benefícios do funcionalismo público, além de mudanças na Paranaprevidência – órgão gestor do Regime Próprio de Previdência Social dos servidores públicos dos Três Poderes no Paraná.
Naquele mês, o prédio da assembleia chegou a ser ocupado por manifestantes. Entre os dias 11 e 12 de fevereiro de 2025, por conta da situação no plenário, os deputados tentaram votar o chamado “pacotaço” em um restaurante da Alep. Uma primeira confusão se instalou depois que eles chegaram protegidos dentro de um camburão.
Deputados chegaram dentro de camburão para votar projeto de lei que professores manifestavam contra
RPC
Depois do atrito, o projeto foi retirado da pauta e os dias seguintes foram de trégua, com os envolvidos dedicados a uma negociação.
Em março, o Governo do Paraná cedeu e assumiu compromissos para pôr fim às paralisações, o que resultou na decisão dos professores retornarem ao trabalho.
Um mês depois, porém, em 25 de abril, os educadores retomaram a greve após uma assembleia realizada em Londrina, no norte do Paraná, frente a uma nova reivindicação de 13% de reposição salarial, pagamento de promoções e outros benefícios. Paralelamente, continuava o impasse sobre as mudanças no Paranaprevidência.
Em 27 de abril, dois dias antes do confronto, caravanas de professores e servidores estaduais estavam em Curitiba para acompanhar a votação do projeto pelos deputados. Os manifestantes não puderem entrar na Alep e acompanharam a sessão por caixas de som.
No dia 28, aconteceu um primeiro conflito no Centro Cívico e manifestantes foram dispersados com bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo e spray de pimenta. O projeto foi retirado de pauta para que os deputados analisassem emendas e a votação foi adiada para o dia seguinte, 29 de abril, fatídico dia do confronto.
A confusão começou por volta das 14h45. Servidores que faziam parte da manifestação tentaram empurrar as grades de proteção para se aproximar da assembleia. A polícia reagiu com o uso de cassetetes, tiros de balas de borracha, bombas de efeito moral e de gás lacrimogêneo e jatos de canhões de água.
29 de abril de 2015: Manifestação de servidores públicos termina com bombas de gás lacrimogêneo e tiros de bala de borracha
RPC
A sessão dentro da Alep tinha acabado de começar quando a fumaça do confronto que acontecia do lado de fora entrou no prédio. Foram cerca de duas horas de conflito.
A imprensa apurou, na época, que mais de 10 ambulâncias foram deslocadas até a praça para atender quem estava machucado. Funcionários de prédios vizinhos foram dispensados do trabalho e uma creche foi fechada.
Mesmo com a confusão, o projeto foi aprovado. A lei que alterou a previdência dos servidores do Paraná foi sancionada no dia 30 de abril. A greve, que começou em 25 de abril, foi finalizada em 9 de junho, 46 dias depois.
O que dizem os ex-governadores citados
O g1 procurou os ex-governadores citados na reportagem.
Sobre o 29 de abril de 2015, Beto Richa classificou o episódio como “lamentável e desnecessário”.
“A maior parte das pessoas foi induzida a erro, acreditando na chantagem colocada em voz corrente, de que a reforma da previdência iria ameaçar a continuidade dos pagamentos de aposentadorias e pensões. A Paranaprevidência, que tinha à época um patrimônio de R$ 7 bilhões, hoje tem mais de R$ 10 bilhões, mesmo tendo assumido o pagamento de 33 mil aposentados com a reforma. E continua sendo o fundo de previdência estadual mais capitalizado do Brasil”, disse Richa, que atualmente é deputado federal.
Sobre o confronto de 3 de junho de 2024, Ratinho Júnior afirmou que respeita e apoia os professores da rede estadual de ensino, e que a atual gestão do Governo do Paraná tem como uma das metas “proporcionar o melhor ambiente para o cumprimento do seu papel pedagógico”.
“A atual gestão do Governo do Paraná reforça o forte compromisso que mantém com o aprimoramento da educação pública, seja na qualidade do ensino, alfabetização, infraestrutura, gestão administrativa ou promoção da inclusão nas escolas. Garantir a melhor educação possível aos estudantes é e continuará sendo prioridade absoluta do Estado”, afirma.
Ávaro Dias e Roberto Requião não se manifestaram até a publicação desta reportagem.
*Com colaboração de Matheus Karam, supervisionado por Mariah Colombo.
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