Moda do futuro: projeto de bioeconomia cria polo industrial no meio da floresta gerenciado por mulheres ribeirinhas, no Pará

Parceria da empresa de moda sustentável Da Tribu e mulheres extrativistas de Cotijuba inaugura um novo Ciclo da Borracha na ilha amazônica, com floresta em pé, inovação tecnológica e beneficiamento do produtos para a geração de renda para comunidades originárias. O seringal secular que irradia floresta a dentro no quintal da família Magno conta muito sobre a história de Cotijuba – uma das 39 ilhas que compõem a região insular de Belém. Mas revela, sobretudo, o futuro que tem sido construído de maneira coletiva pela comunidade extrativista Pedra Branca, localizada na Área de Proteção Ambiental (APA), banhada pela Baía de Guajará e pela Baía do Marajó.
Ali, no meio da mata preservada, acaba de ser instalada uma máquina que aponta para o futuro da moda e marca a nova era do Ciclo da Borracha na ilha: com manejo sustentável, floresta em pé e geração de renda para mulheres ribeirinhas a partir do beneficiamento do látex, que se torna material para a criação de produtos do setor fashion no Brasil e em diversos países.
Cotijuba é a terceira maior ilha do entorno da capital do Pará. A extração de borracha faz parte da história do local desde a década de 1960, quando o látex era vendido para a indústria bélica dos EUA e para a fabricação de pneus. Com a desvalorização da matéria-prima no mercado mundial e a crise dos anos 1980, a demanda pelo látex se esvaziou, e os seringueiros precisaram atuar em outras frentes, como a pesca, transporte de passageiros e atividades turísticas na região.
A exploração da borracha, até então predominantemente masculina, é reativada e ganha outros rumos pelas mãos das mulheres de Cotijuba. Essa virada ocorre quando o caminho de Corina Magno, liderança da Comunidade Pedra Branca, se cruza ao de Kátia e Tainah Fagundes, mulheres à frente da empresa paraense Da Tribu, de moda sustentável. Em 2017, inicia-se a parceria que fez do látex material para a criação de fios emborrachados e couro ecológico, revelando a vocação da ilha para a bioeconomia.
“Desta vez, não tem mais aquele mau cheiro da borracha fervendo na panela de ferro – como foi a minha infância toda, quando eu acompanhava meu pai no serviço. Aquilo adoecia a gente”, conta Corina, filha mais jovem de Manoel Magno, líder comunitário de 77 anos, que há cinco décadas se dedica à preservação do seringal e à extração do látex, tradição que já alcança a 3ª geração da sua família.
“A floresta é o começo de tudo”, diz Manoel, história viva dos ciclos de exploração da borracha na ilha. Ele recebeu o lote de terra no qual vive há décadas como indenização pelo fechamento de uma indústria de pneus na região. Mas já era seringueiro muitos antes disso, desde adolescente. Ele conta que, com a falta da indústria, muitos colegas seus derrubaram as árvores dos lotes. Mas ele fez questão de manter a mata em pé em seu terreno.
“Eu gosto muito do trabalho com a seringa. Eu gosto de seringueira, amo a mata. Aqui, ninguém derruba, não. Pessoal tudo já derrubaram. Mas aqui, ninguém mexe”, diz Manoel, que diariamente acorda às 4h para falar com os passarinhos e cuidar das seringas, que dependem da extração da sua seiva para manter a árvore saudável. “Voltar a trabalhar com a seringueira trouxe esperança para gente”, diz.
Biomateriais
Da parceria entre Da Tribu e a comunidade Pedra Branca, surgiram o fio MagnusLat e o TEA (Tecido Emborrachado da Amazônia) – ambos materiais que combinam algodão orgânico com látex. De relevante durabilidade, baixo uso de água e variadas texturas e cores, essas tecnologias são alternativas sustentáveis para o couro animal e derivados de petróleo que causam profundo dano socioambiental.
“Somos um empreendimento social da Amazônia e que atua em parceria com mulheres extrativistas de comunidades ribeirinhas. Dessa troca de saberes, criamos biomateriais a partir do látex, dando origem a produtos feitos de borracha vegetal – biodegradável e renovável”, destaca Tainah Fagundes, diretora de criação da marca Da Tribu.
A partir do fio e do tecido de borracha natural, é possível dar forma a roupas, sapatos, bolsas, mochilas, alças, cadarços, objetos de decoração, biojoias, tramados, macramês e uma infinidade de possibilidades criativas para o mundo da moda.
A parceria da Da Tribu com famílias extrativistas começou em 2013, ainda na comunidade Paulo Fontelles, na Região Metropolitana de Belém. A partir daí, a marca passou a desenvolver tecnologias próprias para a vulcanização do látex e produção dos fios, processo que foi levado até a comunidade Pedra Branca, em 2016.
“A gente jamais imaginaria esse momento. Se há 6, 7 anos alguém chegasse e dissesse ‘tá vendo aquela borracha velha, fedorenta, aquilo vai virar uma biojoia’, eu ia duvidar”, diz Corina. “A borracha, nesse ciclo que a gente está vivendo, me encantou de uma forma que ela jamais me encantou na minha infância. Foi uma transformação, ressignificação. Agora, nós, mulheres, estamos à frente do processo, e dá muito orgulho ver o tanto de coisa bonita que está sendo feita a partir do látex”, orgulha-se.
A tecnologia social é parte indissociável da moda produzida pela Da Tribu, que fortalece uma rede produtiva que celebra o ecossistema e a valorização dos saberes tradicionais da Amazônia.
Em 2019, a Da Tribu é reconhecida com o selo internacional “Amazônia Wild Rubber”, voltado para iniciativas que trabalham com a borracha amazônica, apoiam produtores locais e conservam a floresta por matéria-prima vegana e renovável. O reconhecimento pela trajetória da empresa já foi contemplado pelos Prêmio Objeto Brasileiro (2016), Pandora – Rede Mulher Empreendedora (2018), Amaz Aceleração (2019), Prêmio Mercado Livre (finalista) 2019, Prêmio MUDA – Vogue (finalista) 2020 e Prêmio Investe Favela 2021.
Máquina da prosperidade
Nesta nova fase, houve um salto na geração de renda relacionada ao látex: a comunidade, que até então produzia 20 litros do material a cada três meses, e vendia de maneira informal na Praça da República; chega a produzir 2 mil litros de látex por trimestre, e o beneficia na própria localidade, beneficiando diretamente cerca de 30 pessoas.
Ao deixar de ser fornecedor de látex, e tornar-se produtor do material beneficiado na comunidade, o montante de riqueza gerada aumenta exponencialmente. Com os fios emborrachados e o couro ecológico, a Da Tribu produz bolsas e roupas, mas o carro-chefe são os acessórios criados pela artesã Kátia Fagundes. São colares, pulseiras, anéis, brincos e enfeites de cabelo produzidos de biomateriais e papel reciclado. Esses produtos são vendidos para todo o Brasil, por meio do site da empresa, que também conta com pontos físicos de revenda em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Florianópolis, Nova Iorque, Lisboa, Coimbra e Londres.
“As joias orgânicas, que a gente cria e produz, têm excelente aceitação, porque além do látex, eu também trabalho com papel reciclável, então isso tem um valor agregado grande, mas sobretudo pelo látex, porque ele conta a história de uma comunidade, carrega um peso saudável da cadeia produtiva”, destaca Kátia.
A chegada da máquina pretende incrementar o volume de produção, e aponta para um futuro ainda mais promissor. A tecnologia, desenvolvida em parceria com a Universidade de Brasília (UNB), foi criada especialmente para tratar do látex amazônico, que possui característica singulares.
“Nesse processo, a gente entendeu que o látex da Amazônia tem suas especificidades, uma delas é que ele tem muito mais água que o látex produzido em outros lugares, como em São Paulo, por exemplo. Então precisávamos de outra tecnologia para lidar com essa matéria-prima. E agora, a máquina vai poder escalar a produção”, explica Kátia Fagundes.
Com investimento de R$ 120 mil, fruto do prêmio conquistado pela Da Tribu no edital de incentivo do Investe Favela, e anos de pesquisa até chegar ao protótipo, neste semestre a máquina foi implantada em um barracão no seringal da família Magno.
A proposta é uma relação horizontal entre a Da Tribu e as mulheres extrativistas que irão operar o maquinário, capaz de tratar o látex amazônico e aumentar o volume de preparo dos fios emborrachados, garantindo-lhes constância de qualidade e padronização.
“A ideia de apartar o processo e levar a máquina para Belém, por exemplo, nunca foi considerada. Esse passo é fruto direto da relação de parceria e respeito que temos junto às mulheres da Pedra Branca. Elas tiveram receio de que fossem substituídas pela máquina, chamavam a máquina de ‘fura olho’, mas, com muito diálogo, esse receio tem se dissipado”, diz Kátia.
O processo artesanal, então, passa a ser industrializado. Uma revolução que cria um polo produtivo no meio da floresta, com participação da comunidade desde a extração do látex à operação do maquinário de beneficiamento – tecnologia que cruza conhecimento ancestral com inovação tecnológica sustentável.
“A proposta é poder escalar todo o potencial dessa seiva daqui, que resiste há 60 anos, para que as mulheres cresçam financeiramente. Não estamos criando apenas uma relação de empoderamento financeiro, mas quando as mulheres têm a sua própria grana, elas conseguem perceber o quanto são valorosas. Elas não precisam sair do seu território para ganhar dinheiro em outra localidade. É possível viver com dignidade, fazendo o que amam, com a uma seiva que é especialmente da Amazônia. Juntas a gente pode mais”, destaca artesã, que deixou Belém para viver em Cotijuba.
Desta forma, a empresa se torna fornecedora do produto beneficiado em larga escala, vendido para outras marcas do setor da moda que, a partir do fio emborrachado e do couro vegetal, poderão criar diversas peças de vestuário e acessórios com a proposta da bioeconomia que beneficia a Amazônia.
A projeção é que a produção de látex aumente para 5 mil litros por trimestre, o que deve gerar rendimento de R$ 2 milhões por ano para a parceria entre Da Tribu e comunidade Pedra Branca, fornecendo biomaterial para empresas de pequeno, médio e grande porte do Brasil e de países como Itália e Estados Unidos, que já fizeram encomendas.
“A chegada da máquina possibilita que outras marcas, bem maiores do que nós, tenham acesso ao biomaterial e criem a partir dele. Já temos participado de feiras internacionais, mesmo antes da chegada da máquina, e isso vai se ampliar agora”, diz Kátia.
Por meio da máquina, a meta é colocar no mercado 30 mil metros mensais do fio emborrachado e alcançar um faturamento de R$ 5 milhões por ano. Com o aumento da demanda, o projeto está em processo de ampliação e deve alcançar, até 2024, outras quatro comunidades localizadas no Marajó, Mocajuba, Mosqueiro e Benevides, beneficiando 2 mil famílias.
“A gente vai conseguir impactar outras comunidades e outras mulheres e tirar esses pequenos seringais, que não são de interesse da grande indústria, que estão ‘apagados’ e que podem voltar a ser produtivos. A ideia é replicar e ampliar a rede por meio de capacitação”, destaca Tainah Fagundes.
A urgência da economia verde
O Pará lidera dois rankings preocupantes: é o Estado brasileiro que mais emite gases do efeito estufa e também aquele que mais desmata no país, de acordo com dados de 2022 do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG) e do Relatório Anual do Desmatamento (RAD), do Mapbiomas. Isso torna o Pará o vilão da mudança climática no Brasil – resultado de modelos econômicos que devastam e poluem a região.
O enfrentamento a esses desafios aponta para a potência da floresta em pé, por meio da bioeconomia, que atua na promoção de cadeias produtivas baseadas na sociobiodiversidade e na biodiversidade, aliando a exploração dos recursos naturais a utilização de novas tecnologias com o propósito de criar produtos e serviços mais sustentáveis.
O Pará possui uma grande extensão de floresta amazônica. Mais de 78% do território paraense é coberto por vegetação nativa, e esse diferencial, se bem aproveitado com sustentabilidade ambiental e justiça social, poderá colocar o estado na vanguarda da bioeconomia no Brasil, destaca Renato Coelho, gerente de Soluções e Inovação do Sebrae no Pará.
“A bioeconomia é a nossa vocação afinal. A Amazônia possui a maior biodiversidade do planeta e, por isso, tem um papel central na mitigação das mudanças climáticas, como o armazenamento do carbono, a produção de oxigênio e a manutenção da floresta em pé, com a permanência e defesa das comunidades tradicionais e dos povos originários”, destaca.
Da Tribu integrou diversos processos de aceleração do Sebrae, entre eles, o Sebrae Tech, o Empretec e, mais recentemente, o Inova Amazônia, criado em 2019 para potencializar o empreendedorismo na Amazônia Legal a partir da bioeconomia com inovação, para promover o desenvolvimento territorial sustentável.

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