Com três Grammys na carreira e álbum lançado neste mês, músico americano conversou com o g1 em uma loja de discos do Centro da cidade de SP, apontou referências diversas e experimentou um pouco de música brasileira. Fantastic Negrito
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Correndo os olhos por centenas de discos de vinil de uma loja na Galeria Nova Barão, Centro de São Paulo, Fantastic Negrito surpreende logo no primeiro álbum que chama sua atenção. Para um artista que se define como autor de músicas “de raízes negras, como o rock, funk, soul, blues, com batidas de pé e palmas, uma igreja sem religião, com vibração”, é curioso vê-lo segurar nas mãos um disco do Kraftwerk. Para o músico americano, o grupo alemão setentista de música eletrônica “impactou profundamente o hip hop por causa das batidas eletrônicas”. Com um sorriso no rosto, ele pergunta: “Você não esperava por isso, né?”
O g1 conversou com Xavier Amin Dphrepaulezz, cantor, compositor e instrumentista nascido no Noroeste dos Estados Unidos e criado na Califórnia, do outro lado do país. Ele até chegou a usar seu nome de batismo para o primeiro álbum da carreira, em 1996, que fracassou. Depois disso, em 1999, um acidente de carro o deixou em coma por três semanas e provocou sequelas na mão direita, a que qualquer guitarrista destro usa para o ritmo do instrumento. Ele insistiu, mas, desiludido, veio a aposentadoria da música por sete anos.
O casamento e o filho o inspiraram a tentar de novo. O retorno aconteceu com o novo nome artístico, Fantastic Negrito, em 2014. Só então, aos 46 anos, seu talento foi reconhecido ao bater outros 7 mil músicos em uma competição da NPR Tiny Desk, que lhe rendeu um show na prestigiada rádio de música independente.
“Eu sinto que não tenho mais muito medo de não vender discos. Quando você não quer algo, você tem todo o poder. Quando você não quer o que a indústria está te oferecendo, e eles oferecem muita coisa, você se sente muito poderoso. Eu não preciso do que eles têm. Eu fui direto às pessoas, toquei em estações de trem e não sabia que estaria no Brasil oito anos depois. Tem muito poder em fazer o que você gosta sem esperar nada em troca, e isso veio com a idade e a experiência.”
Fantastic Negrito vai se apresentar no Cine Joia nesta quinta-feira (24). É a sua terceira passagem pelo Brasil, na esteira do lançamento de seu sexto e mais recente álbum, “Son of a Broken Man”, lançado em 18 de outubro. Desde o renascimento da carreira e reconhecimento tardio, Fantastic Negrito venceu três Grammys por melhor álbum de blues contemporâneo.
Portanto, o tradicional blues americano não passaria despercebido pelas estantes da loja. Ele olha e comenta disco a disco. Para ele, Stevie Ray Vaughan (1954-1990) é “ridiculamente talentoso”. B.B. King (1925-2015) é um “arquiteto”. “A música vive nele… e em seus dedos”. Buddy Guy é “ungido”. E encontra um vinil de um amigo próximo, Taj Mahal, outro lendário bluesman. “Eu deveria fazer um Facetime com ele agora. Ele ia amar. Ele realmente entende as raízes negras.”
Ele puxa o álbum “1999”, de Prince (1958-2016), e conta: “Um dos artistas mais inovadores do nosso tempo. Eu acho que estava na escola, me comportei bem e ganhei esse álbum. Era uma cara tão diferente dos outros… Eu pensei: ‘É OK ser diferente’, então ele abriu a porta. Aprendi com ele a ser eu mesmo, ser único. Ele é responsável por muitas carreiras”.
A curiosidade de Fantastic Negrito ajuda a entender as variações de suas próprias composições. “Toda vez que eu vou fazer um álbum, eu penso em como me livrar do cara que fez o último. Tento mudar tudo.” Logo depois, outra capa segura sua atenção. Ele anda em direção à fileira de vinis listados como “indie” e puxa um clássico dos anos 90.
“Aqui tem um dos meus álbuns favoritos de todos os tempos”, ele afirma enquanto segura com as duas mãos uma edição de “OK Computer”, da banda inglesa Radiohead. “Eu acho que a beleza de como a música se torna inovadora e interessante quando extraímos de poços diferentes. É uma das minhas bandas favoritas. Eu gosto de tudo! Por isso sou um pesadelo para o marketing de uma gravadora.”
Ele ainda tem tempo de experimentar dois exemplares da música brasileira, que afirma não conhecer. Primeiro, “Quer Queira, Quer Não Queira”, de “Racional (vol. 2)”, de Tim Maia. Ao ouvir que Tim passou um tempo nos Estados Unidos, ele exclama: “Ele soa como alguém que viveu na América! A produção é mais crua, mas os vocais são bem mais presentes. É o que eu vejo. Eu ouviria mais”.
Mas a contemporânea BaianaSystem chama mais a atenção do americano. Ao som de “Lucro”, ele olha para baixo, prestando mais atenção. “Isso é mais brasileiro do que americano. Bem mais autenticamente brasileiro.” E brinca: “Você vai ter que me fazer uma playlist”. Antes de encerrar a conversa, puxa o celular do bolso e tira uma foto da capa de “Duas Cidades”, álbum do grupo baiano.
Confira abaixo, mais trechos do bate-papo com Fantastic Negrito:
g1: Você consegue se lembrar de alguns momentos importantes da sua relação com a música?
FN: Meu pai tinha essa vitrola velha, colocava uns discos antigos para tocar, e um deles tinha uma melodia incrível. Eu era uma criancinha, tinha uns 5 anos… eu perguntei: “Pai, o que é isso?” Ele disse: “Louis Armstrong, St Louis Blues”. “Oh, uau!” Essa foi uma interação muito importante com a música. Eu pensei que as pessoas estavam dentro da vitrola tocando.
g1: E a primeira vez que você viu uma apresentação ao vivo? Ou a mais impactante?
FN: Meu padrasto era um baixista muito famoso e tocava com o Thelonious Monk. Eu era muito novo, mas Dizzie (Gillespie), Max Roach e os outros vinham à minha casa! Tinha um clube pequeno em Berkeley chamado Yoshi’s (agora foi para Oakland). Experimentar aquela vibração… eu não ligava tanto porque era muito novo, mas sabia que era muito poderoso! Sabe.. Dizzie Gillespie me dava tapinhas na cabeça e Max Roach me falava: “Vá chamar seu pai, garoto…”. Então eu sabia que essas pessoas eram poderosas. Esses foram alguns momentos fundamentais na minha vida.
g1: Você tenta levar essas impressões para as suas apresentações?
FN: Meu sentimento quando subo no palco é: “Saia do meu caminho!”. Eu vou tentar converter todos, é a igreja sem religião. Ao vivo, eu preciso entrar nos trilhos porque é tudo muito catártico. Tem essa coisa na sua mente te dizendo: “Você não é bom o suficiente, suas músicas são ruins, você nunca escreveu nada, você não consegue cantar”. Algumas pessoas usam drogas. Eu uso… a experiência! Eu vomitava, nervoso, mas, depois que você passa disso, é inacreditável. É a melhor coisa do mundo. É você interagir com as pessoas e o som. E, geralmente, elas são de outro lugar.
Eu sou de Oakland, é um outro mundo. Eu estou levando Oakland, Califórnia, toda a Bay Area. De lá vieram o Creedence Clearwater Revival, o Sly Stone, Santana, Green Day, Metallica, The Pointer Sisters, Tony! Toni! Toné!, E40, Too Short… cara, é muita coisa! Todos esses sons diferentes são uma experiência. E você é uma extensão de tudo isso, dessa intensidade, levando isso para o mundo.
g1: Você busca uma memória feliz de seu pai ao falar da música, mas o relacionamento foi muito turbulento. O novo álbum se chama “Son of a Broken Man”. Como você lida com isso?
FN: Meu pai tinha 63 anos quando nasci e minha mãe tinha 30. Eu fui o oitavo filho de 15! Ele era um homem muito complicado. Veja, ele nasceu em 1905! Era meio brilhante, meio excêntrico, meio interessante. Isso é ótimo! Mas, se você é negro, isso não é bom. Um negro, naquela época, deveria ficar “no seu lugar”. E ele não conseguia.
Então, ele mentiu, trapaceou, fez o que ele tinha que fazer. Eu acho que meu pai estava tentando ser uma pessoa numa época em que isso não era permitido.
E, no meio disso tudo, ele destruiu muita coisa, muitas pessoas, contou muitas mentiras… inventou nosso sobrenome! Eu descobri isso. Para lidar com o racismo estrutural, ele inventou um sobrenome que os brancos não conseguiam pronunciar. E eu lembro dele sempre falando: “Ei, parem de reclamar disso tudo. Vocês acham que os brancos são especiais?” E eu ficava pensando… “O que ele quer dizer com isso?” Eu acho que ele estava tentando vencer o sistema do seu próprio jeito.
g1: Ele inventou o sobrenome de vocês? Dphrepaulezz?
FN: Eu acho que, de alguma forma, isso nos tirava de ser… “só” afroamericanos, poderíamos ser alguém. E as pessoas o tratavam de uma forma diferente. Ele também era muito abusivo. Parou de falar comigo aos 11 anos. Eu me lembro de tentar falar com ele, e ele só me ignorar. Uma sensação muito estranha. Eu não conhecia a palavra “humilhação”, mas eu acho que ele estava me humilhando ao me ignorar.
g1: É verdade que ele te expulsou de casa?
FN: Expulsou. Não só eu, ele expulsou todos nós. Sempre que a criança chegava à puberdade e meio que agia mal, tinha um mau comportamento, ele renegava. Eu sinto que todos e tudo são meus professores. Tudo. Eu tento olhar a vida dessa forma, você está aprendendo coisas. Algumas das piores situações são os melhores professores. Eu sou grato como ser humano por experimentar a vida com todos os triunfos e todos os fracassos.
g1: Já é sua terceira vez no Brasil. Quais são as primeiras memórias que você tem de suas vindas para cá?
FN: Minhas lembranças são… foi bom, sorrisos, comida, abraços… sol. E chuva! Chuva que vem do nada! Uma conexão espiritual… um lugar onde eu preciso estar. Preciso estar aqui.
SERVIÇO:
Fantastic Negrito
🗓️ Quando? Quinta (24)
📍Onde? Cine Joia – praça Carlos Gomes, 82, Liberdade, Centro
💲Quanto? A partir de R$ 190
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