Lixo na Grande Belém: o ‘sufoco’ de quem vive próximo a aterro que funciona sob acordo judicial

Comunidades no entorno reclamam de odor e falta de qualidade de vida: ‘Queremos respirar, mas não conseguimos’. Vídeos mostram aterro sanitário e também proximidade com casas. ‘Aterro Sanitário de Marituba’: conjunto de casas mostram a próximidade com o empreendimento.
Adelson Albernás/TV Liberal
O amanhecer é difícil para algumas famílias de Marituba, na Grande Belém. Elas vivem a poucos quilômetros do aterro sanitário que recebe o lixo da região metropolitana e convivem com forte odor na área: ‘Nós acordamos sufocados’. Imagens áreas mostram a proximidade entre o empreendimento e residências – veja no vídeo abaixo.
Aterro sanitário de Marituba fica próximo a residências e balneários
Apesar de ser o único aterro sanitário do Pará autorizado e licenciado pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Semas), falhas ao longo dos oito anos de funcionamento do local fizeram com que o aterro fosse alvo de reclamações e ações na Justiça. Para o Ministério Público do Pará, além dos problemas na gestão, “à omissão dos municípios se somou” resultando nos problemas na área.
“Ondo moro o odor é insuportável. É um cheiro muito forte. Acordamos sufocados. Queremos respirar, mas não conseguimos. Não podemos nem abrir a porta, a janela. Ficamos refém”, diz Júnior Vera Cruz, que mora em Marituba há 58 anos.
O aterro sanitário já teria encerrado o recebimento de lixo se não fosse um acordo judicial que prorrogou o funcionamento até 31 de agosto de 2023. Mesmo a menos de 1 mês do encerramento, não há definição entre autoridades sobre onde os resíduos gerados na Grande Belém serão levados a partir de 1º de setembro.
Enquanto isso, os moradores do entorno reclamam do mal cheiro e ficam preocupados com o funcionamento do aterro, mesmo após o encerramento oficial das atividades, visto que o lixo depositado no local seguirá em decomposição ainda por anos. A empresa diz que os resíduos no local seguirão sendo tratados e que o local só não receberá mais lixo.
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Esta é a segunda reportagem de uma série do g1 sobre a destinação dos resíduos sólidos na Grande Belém, as denúncias envolvendo o aterro de Marituba, a rotina difícil de moradores do entorno, as possíveis soluções envolvendo o lixo da região e como os cidadãos podem contribuir para destinação mais adequada de resíduos e com o meio ambiente. Nesta reportagem você vai entende mais sobre:
1- ‘Ar podre. Você pensa que vai dormir e não vai acordar mais’ : reclamações de moradores
2 – Médicos falam que temos que procurar outro local para morar’: o que dizem especialistas
3 – ‘Falha da empresa se somou à omissão dos municípios’: os problemas apontados pelo MP
1 – ‘Ar podre. Você pensa que vai dormir e não acordar mais’
José Ailson Oliveira tem 39 anos e mora em uma casa a menos de 2 quilômetros da Central de Processamento e Tratamento de Resíduos de Marituba (CPTR). Ailson, como prefere ser chamado, tem três filhos e integra o ‘Fórum Permanente’, um movimento contrário à instalação do aterro de Marituba.
José Ailson Oliveira em protesto contra a instalação do empreendimento.
Divulgação/Arquivo Pessoal
Segundo o mototaxista, desde a instalação a comunidade que vive no entorno sofre com muitos problemas.
“O cheiro [que vem do aterro] é você destampar uma fossa. É um ar podre. Isso arde na garganta e na vista. Se você acordar pela madrugada e estiver fedendo, você não consegue dormir. Você pensa que vai dormir e não vai acordar mais. Às vezes a gente acorda e nossa garganta está seca, seca e seca”, afirma o morador.
Ailson é apenas uma das partes envolvidas na complexidade do gerenciamento de resíduos sólidos, um problema nacional que se reflete na Grande Belém. No único aterro sanitário no Pará que passou por todas as etapas do processo de licenciamento ambiental pela Semas, as obrigações legais não foram seguidas como deveriam, segundo o Ministério Público estadual do Pará (MPPA). O órgão já moveu uma série de ações para melhorias do empreendimento.
Aterro sanitário em Marituba começou a operar em junho de 2015
Para o MPPA, a empresa falhou na operação do aterro e os três municípios envolvidos foram omissos diante da gravidade da situação. As consequências dessas falhas são apontadas por moradores de Marituba e por um ator que não fala, mas visibiliza os danos sofridos: o meio ambiente.
Para a população, uma das reclamações permanentes é sobre o mau cheiro provocado pela liberação do chorume (líquido de coloração escura e cheiro forte gerado pela decomposição do lixo). O mototaxista Ailson diz que, mesmo após 8 anos, ninguém se acostumou com o cheiro.
“Quando vem, começa a bater o cheiro, é agoniante, revoltante! Em um momento, nós estamos sorrindo. De uma hora para outra nosso sorriso muda. Começa a feder. Bate raiva, ódio”, reclama o morador .
O forte odor também afeta o comércio na comunidade. O técnico de assistência de celular Helder Gama tem uma venda de café dentro da própria residência e reclama que os clientes se sentem incomodados com o odor.
“Quando recebemos clientes para tomar café e bate o odor, vemos que alguns fazem aquela cara de insatisfação
Já teve uma pessoa que até deixou um cuscuz de lado e resolveu não comer mais porque ficou se sentindo ruim”, relembra o morador do bairro Uriboca.
A empresa diz que atua com medidas para mitigar o odor, como: cobertura e sistema de drenagem das lagoas de chorume; uso de mantas impermeabilizadas, desodorizadores pulverizados, flare industrial e a Estação de Tratamento de Efluentes; plantação de mudas que ajudam a reduzir o odor e instalação de estação meteorológica para avaliar quais condições climáticas são mais propícios à geração do odor.
Anualmente, o aterro recebe aproximadamente 480 mil toneladas de resíduos. São cerca de 40 mil por mês e 1.300 por dia. Belém corresponde com 75% dos resíduos, Ananindeua com 20%, Marituba com 5% e o restante de clientes privados.
Ao longo de 8 anos de operação, já foram aterradas mais de 2 milhões de toneladas de resíduos. Dos resíduos recebidos, o material orgânico (responsável pela produção do chorume) representa quase 57%.
‘Aterro Sanitário de Marituba’ tem estação de tratamento para chorume
Adelson Albernás/TV Liberal
Ailson Oliveira afirma que a comunidade sempre foi contra a instalação do aterro. Durante os últimos oito anos, ele presenciou muitos amigos venderem suas casas e revela não ter condições de comprar outra residência para levar a família a outro local.
“É uma situação muito delicada, porque nós fomos criados aqui. No entorno do aterro, a gente se conhece. Não se trata de se acostumar com o cheiro. Infelizmente, não podemos abandonar nosso lar”, diz o mototaxista.
A CPTR, conhecida como aterro de Marituba, começou a operar em 25 de junho de 2015. A área de 100 hectares ficou responsável por receber lixo de três cidades da Região Metropolitana: Belém, Ananindeua e Marituba. As atividades no aterro começaram, por exemplo, sem o funcionamento do centro de triagem para separação de material reciclável do orgânico.
Segundo a empresa que administra o local, “a separação de orgânico do reciclável deve sempre ocorrer na coleta seletiva municipal, na origem da geração de resíduos, com a coleta pública ou com cooperativas. A empresa afirmou que tem “uma central de triagem, com esteira mecanizada e baias de armazenamento de recicláveis, as quais são cedidas para a prefeitura de Marituba”.
2- ‘Médicos falam que temos que procurar outro local para morar’
Júnior Vera Cruz, uma das lideranças do movimento Fora lixão, conta que após protestos dos moradores com fechamento da via que dá acesso ao aterro, ainda em 2016, autoridades deram mais atenção às reclamações.
‘Aterro Sanitário de Marituba’: residências ficam a menos de 1 km do local do aterro.
Adelson Albernás/TV Liberal
A liderança do Fórum Permanente também afirma que o aterro de Marituba não realizava a queima do gás metano. O mototaxista Ailson Oliveira reforça a reclamação ao dizer que o local só começou a capturar e queimar o gás após a pressão do Fórum.
Problemas como dor de garganta, de cabeça e coceira são constantes na comunidade, afirma Ailson. O mototaxista fala que a primeira filha, que tem 8 anos, mesma idade que o tempo de atividades do aterro, sofreu muito com esses sintomas.
“O que os médicos falam é que temos que procurar outro local para morar, porque enquanto estivermos ao lado do aterro, os meus filhos nunca vão melhorar”, afirma Ailson Oliveira.
Além do chorume, a decomposição dos resíduos nos aterros gera a produção de gases, o metano é um deles. O gás é incolor, inodoro, inflamável e forte causador do efeito estufa.
‘Aterro Sanitário de Marituba’: um dos balneários fica cerca de 1 km do empreendimento.
Adelson Albernás/TV Liberal
Nos aterros, o metano deve ser captado por tubos e drenados para uma espécie de chaminé, onde é queimado. E segundo a empresa responsável pelo aterro, a reclamação relacionada ao metano não procede, pois o gás sempre foi queimado, segundo Reginaldo Bezerra, diretor de negócios da Guamá.
“O que está no licenciamento são as chaminés. Nós captamos o gás que é produzido e encaminhamos para uma chaminé, onde o gás é queimado, transformando o metano (CH4) em CO2 (gás carbônico)”, afirma.
Segundo o endocrinologista e pneumologista Rubens Tofolo Jr., o chorume tem cheiro tão forte que pode atrair vetores, é difícil de tratar e quando há contato, pode causar “problemas de saúde, desde problemas cutâneos e respiratórios até doenças como salmonelose, giardíase , leptospirose , disenteria”.
Já o gás metano, “pode ser muito nocivo à saúde, caso seja inalado, pois causa danos no sistema nervoso cerebral, problemas respiratórios, desmaios e sensação de asfixia”, disse o médico especialista.
Ainda conforme o pneumologista Rubens Tofolo, algumas medidas podem ser tomadas por quem mora em locais como as comunidades em volta do aterro, ou mesmo em quem está próximo a lixões, situação muito mais preocupante ambiental e socialmente.
“Uso de máscaras e lavar as mãos e nariz ajudaria a minimizar estes efeitos do chorume e do gás metano”, afirma.
A Guamá Tratamento de Resíduos, administradora do local, afirmou que “conta com a queima controlada do biogás, a qual iniciou em 2021, com a instalação de redes de captação e unidade de queima controlada”. O sistema capta os gases produzidos no aterro e os transforma em energia elétrica usada no próprio aterro, contribuindo para redução da emissão de poluentes na atmosfera.
‘Aterro Sanitário de Marituba’: estações de tratamento de chorume.
Adelson Albernás/TV Liberal
“A usina não estava na condicionante. Foi uma opção da empresa para gerar energia. Fazemos a medição diária e contínua dos gases. […] Não jogamos o metano na atmosfera. Só em 2022, já queimamos aproximadamente 5 milhões de toneladas”, afirma o diretor de negócios Reginaldo Bezerra.
A Central de Processamento e Tratamento de Resíduos de Marituba fica próxima de canais hídricos, o que gera outra preocupação aos moradores. Ailson Oliveira diz que a região tem um igarapé (curso de um rio ou canal dentro das matas) contaminado.
“O [Instituto] Evandro Chagas já veio fazer várias coletas. Mas como aqui é uma área de baixa carência, as pessoas são obrigadas a beber água [de poço]”, lamenta o mototaxista.
Em agosto de 2022, o Instituto Evandro Chagas emitiu um parecer a pedido do MPPA. O Instituto analisou os canais hídricos localizados próximos ao aterro e identificou alterações nos parâmetros estabelecidos pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente. O parecer alertou quanto à presença acima dos valores de referência de substâncias como Arsênio, Mercúrio, Benzeno e seus derivados.
‘Aterro Sanitário de Marituba’: área ainda não operada para depósito dos resíduos.
Adelson Albernás/TV Liberal
No entanto, a empresa informou que realiza análises periódicas “de 11 poços de monitoramento para águas subterrâneas e 8 pontos de monitoramento das águas superficiais” e que não há “anomalias e/ou aumento nas concentrações de substâncias nocivas à saúde ou tóxicas” e que o aterro “se mantém operando sem alteração da qualidade ambiental dos recursos hídricos da região, desde o início das operações”.
Júnior Vera Cruz cobra uma resposta do poder público. Segundo ele, pessoas estão com problemas de saúde e crianças e idosos são as que mais sofrem.
“As autoridades nos abandonam. Ninguém mais veio aqui. Tem que fazer um acompanhamento para ver como está a alergia à pele e os problemas de respiração das pessoas”, questiona o técnico em administração.
3- ‘Falha da empresa se somou à omissão dos municípios’, diz MP
A promotora do Ministério Público do Pará Eliane Moreira, responsável pela 5ª Promotoria de Justiça de Marituba, diz que a sociedade tem que se conscientizar e cobrar dos gestores dos três municípios responsabilidade sobre a questão dos resíduos sólidos.
“Esse não é um problema apenas de Marituba. Esse é um problema de todos os três municípios envolvidos. Ou seja, a cobrança tem que passar também pelos prefeitos”, afirma.
Segundo Eliane Moreira, os municípios de Belém, Ananindeua e Marituba não estão cumprindo as obrigações legais da Política Nacional de Resíduos Sólidos e nem as obrigações assumidas por meio do TAC de 2013.
Para o MPPA, a má operação da empresa Guamá Tratamento de Resíduos é um dos motivos para os problemas atuais.
“A empresa falhou gravemente na operação do aterro. Esse é um ponto relevante”, destaca Eliane Moreira.
Eliane Moreira diz que o Ministério Público tem cobrado para que os três municípios da Grande Belém se programem minimamente para o futuro, que tenham um planejamento do que fazer com o lixo produzido em suas cidades.
“À revelia dos MP foi feito um novo acordo em 2021 contra o qual o Ministério Público recorreu, mas que resultou na prorrogação até 2023″, disse a promotora que acompanha a situação do aterro.
O que temos cobrado é que exista uma alternativa objetiva por parte dos municípios. Eles devem apresentar uma alternativa para destinação de resíduos sólidos pós-2023”, afirma a promotora.
‘Aterro Sanitário de Marituba’: no lado fica a parte administrativa e no lado direito ficam as estações de tratamento de chorume.
Adelson Albernás/TV Liberal
No entendimento de Eliane Moreira, a falha da empresa que gerencia o aterro se somou à omissão dos municípios. Para a promotora, Belém, Ananindeua e Marituba não cumprem adequadamente a Lei de resíduos sólidos e enxergam o aterro como única destinação ao lixo.
“Não adianta apenas ter um lugar onde despejar resíduos. Antes dos resíduos chegarem ao aterro. o município tem que ter coleta seletiva eficiente. O descarte é a última alternativa, mas os municípios têm utilizado como se fosse a primeira. Ao utilizar como única possibilidade eles também contribuem para o mal funcionamento do aterro”, explica.
As cobranças do Ministério Público podem ser resumidas em algumas frentes, diz Eliane Moreira. “Uma é para que ocorra o correto funcionamento do aterro, por parte da empresa, e outra relacionada ao cumprimento das obrigações que os municípios não cumpriram desde o Lixão do Aurá”.
Em nota, a Guamá disse “que sempre cumpriu todas as legislações, nacionais, estaduais e acordos firmados, desde a implantação do Aterro Sanitário em Marituba em 2013, para o tratamento ambientalmente adequado e seguro dos resíduos recebidos dos municípios de Belém, Ananindeua e Marituba”.
Ainda segundo a Guamá, “para manter suas operações, o Aterro Sanitário de Marituba passou por todas etapas que integram processos de licenças e estudos ambientais e mantém tecnologias e diretrizes em governança corporativa que seguem a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS)”.
Segundo a Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Semas), “houve análise de todos os documentos e projetos apresentados pela empresa. Um Grupo de Trabalho também foi criado para discutir o destino de resíduos sólidos na Região Metropolitana”.
A prefeitura de Belém diz que “vem tratando com o governo do Estado para construir um novo Aterro Sanitário e também um novo modelo de tratamento de resíduos sólidos”. Na cidade, os problemas na coleta afeta também a qualidade do lixo que chega ao aterro, carregado de umidade, que aumenta ainda mais o chorume. A prefeitura lançou edital para concessão de serviço de limpeza urbana e chegou a receber propostas de empresas nesta segunda-feira (31), mas a licitação foi suspenso pela Justiça.
Segundo a Prefeitura de Marituba, além da coleta seletiva na cidade estar em ampliação, a cidade busca “alternativa na construção de unidade de compostagem em parceria com os agricultores familiar”, o que pode gerar menos lixo e, consequentemente, menos chorume.
Em Ananindeua, ao menos quatro secretarias estão servindo de pontos de entrega voluntária de materiais recicláveis. A prefeitura ainda informou ao g1 “que vem desenvolvendo alternativas modernas, que devem ser adotadas caso não se concretize a execução da solução conjunta dos municípios da região metropolitana” e que trabalha no incentivo de políticas públicas ligadas à reciclagem e à economia sustentável.
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