Flor de Mururé, Maiara Almeida e Daniel ADR: jovens artistas buscam na fé negra ancestral inspiração para suas músicas e instrumento de resistência contra o racismo religioso. Flor de Mururé, Maiara Almeida e Daniel ADR: jovens artistas buscam na fé negra ancestral inspiração para suas músicas e fazem da cultura afro-amazônida instrumento de identidade e resistência
Rafa Kennedy/Joyce Cursino/Nay Jinknss
Nesta segunda-feira (13), Dia de Luta contra a Discriminação Racial, artistas afro-amazônicos falam da inspiração na fé negra para a criação de suas obras e da importância da ancestralidade para a sobrevivência e autoestima dos povos marginalizados. Do rap e trap, do carimbó urbano a MPB, são jovens músicos negros, caboclos e trans que celebram a diversidade e fazem da arte instrumento para o combate ao racismo religioso. Confira, no g1, as entrevistas com Flor de Mururé, Daniel ADR e Maiara Almeida.
Flor de Mururé canta ao lado do coral de artistas trans, suas irmãs de santo, na canção “Dona Mulambo”
Cabron Studios
Exú Mulher
“A fé preta é instrumento de sobrevivência de corpos trans”, diz Flor de Mururé, músico paraense. Homem trans, ele conta que ganhou irmãos e acolhida no terreiro de Tambor de Mina em Belém encabeçado por uma travesti, a Mãe Rosa de Luyara.
“O nosso corpo é marginalizado em todos os lugares e ambientes. Essa é a verdade. A gente não tem espaço nem para o espiritual. Então, quando eu me deparo com a Mãe Rosinha, vejo nela um corpo trans, minha imagem e semelhança. Sinto que ali poderia seguir o meu caminho”, diz.
Lugar de resistência, o terreiro é frequentado por pessoas LGBTQIA+ que se tornaram fundamentais para erguer CROA, primeiro disco de Flor de Mururé que está prestes a ser lançado. O projeto tem patrocínio da Natura Musical e do Governo do Estado via Lei Semear e Fundação Cultural do Pará, com produção executiva da Psica Produções.
Para agradecer, Flor de Mururé fala de Exú Mulher. Dona Mulambo é a pombagira que tira seus filhos da sujeira, e os conduz à força, à coragem e ao renascimento. É entidade de reconstrução e amor. Uma fé de terreiro que é instrumento para se manter de pé no país que mais mata pessoas trans no mundo.
“Imagina ser trans na Amazônia, periferia do país que mais assassina pessoas trans no mundo e que, ao mesmo tempo, é o que mais consome pornografia trans no planeta?”, provoca o artista, que deixou a própria casa ainda adolescente, em busca de sobreviver às tensões familiares. Nesse contexto hostil, Flor se volta à arte e se aproxima da fé afro religiosa.
Na canção “Dona Mulambo”, que chegou às plataformas digitais este mês, participam as artistas trans Anastácia Marshelly, Valesca Minaj e Mulambra. “A gente sofre muitas retaliações, é mal visto. Mas pode entrar na Casa a pessoa que for, que ninguém vira as costas, a gente ajuda. Imagina o mundo contra nós, e a gente abraçando e perdoando. A nossa capacidade de perdão é muito grande para poder existir no mundo”.
De força e luz, o amor materno de Dona Mulambo é celebrado na composição de Flor de Mururé em parceria com João Feijão. “Fui tirado do lixo para ser melhor. Foi mamãe quem falou. Eu vou te alimentar, vou te fortificar. Você é minha mamãe, Saravá!”.
Mãe Rosa de Luyara de Oyá, da Casa de Santo dedicada a pessoas LGBTQIA+, no subúrbio de Belém
Cabron Studios
Com levada de Tambor de Mina, e participações do Trio Manari na percussão, do suíço Thomas Rohrer na rabeca e produção musical de André Magalhães, “Dona Mulambo” mostra a força da sonoridade popular e dos terreiros do Pará e do Maranhão, com as bênçãos de Mãe Rosa de Luyara de Oyá, em áudio captado durante gira no Terreiro Rainha Bárbara Soeira e Tóy Azaká – Casa de Santo dedicada a pessoas LGBTQIA+ no subúrbio de Belém, capital do Pará.
“Dona Mulambo” foi escolhida para apresentar ao público o disco de estreia de Flor, batizado de CROA, que chega às plataformas digitais ainda este mês. Neste trabalho inédito, o artista traz suas vivências como homem trans e a relação de afeto e sobrevivência de corpos dissidentes através das religiões de matrizes africanas e originárias, que celebram orixás, voduns e encantados.
O clipe, com direção artística de Flor de Mururé e Cabron Studios, traz imagens das festas no terreiro, seus corpos trans em gira, imagens de bastidores da gravação da música, cenas dos artistas em visita a regiões ribeirinhas da Amazônia e trechos de shows realizados em Belém: uma compilação da potência e da trajetória de insistência e arte do músico paraense, de apenas 23 anos.
“Eu não queria precisar lutar só por ser uma pessoa trans, não queria me provar o tempo todo. Não faço questão da fama, do sucesso. Pra mim, o que importa é nosso corpo-território vivo”, diz o artista.
Black Christ: Daniel ADR vestido com as roupas e as armas dos orixás
Nay Jinknss
Filho de Oxum
Daniel ADR, prodígio da cena do rap do Pará, celebra a fé preta na Amazônia no clipe “Afago de Oxum”, que traz a avó do artista como protagonista, e fala da dualidade entre força e ternura que forja o rapper periférico.
Ogum é o orixá das batalhas, da pujança que corre nas veias, aquele que transforma o metal em instrumento de luta. Oxum é a rainha da água doce, é a sabedoria, o poder feminino, ouro e búzios.
“Eu sou filho de Oxum, mas antes, sou filho de Ogum. Então nessa combinação, acho equilíbrio entre o doce de Oxum, meu lado sensível, que chora, que sofro, que sente dor, tristeza; e a fúria de Ogum, a guerra, a força que eu trago”.
Afago de Oxum: dona Raimunda e o neto, Daniel ADR
Cabron Studios
“Afago de Oxum” celebra a potência dual, de força e doçura, que cerca Daniel ADR, faz uma homenagem à fé afro-religiosa que o orienta – e um profundo agradecimento ao milagre que lhe reorientou a vida.
“Essa música é uma homenagem à santa Oxum, pela minha profunda relação com o Tambor de Mina, que surgiu quando sofri um acidente de moto. Até então, eu, marxista e ateu, nunca tinha sentido o chamado da espiritualidade. Mas eu senti que algo poderoso me protegeu naquele acidente. Eu senti, algo me segurou, me carregou nos braços, me salvou. Ali, minha ancestralidade me chamou e eu segui a fé afro-religiosa”, relata o artista, que é Vodunsi-hê dentro do Tambor de Mina.
Filho de um casal muito jovem e que se separou quando Daniel ainda era bebê, o rapper foi criado pela avó materna, dona Raimunda. Entre os bairros do Guamá e da Cremação, periferia de Belém, cresceu ouvindo rap e samba, ritmos que narram sua trajetória desde a infância. Sempre sob os olhos e cuidados da avó-mãe, que, no clipe, aparece como protagonista – assim como na vida de Daniel.
Em “Afago de Oxum”, dona Raimunda surge envolta em búzios dourados. Terna, acarinha a cabeça do filho-neto em frente às águas mansas dos rios. O clipe, dirigido por Ícaro Ésse, traz ainda a participação de Andrea Gonçalves, irmã de santo de Daniel, que se conheceram no terreiro do Tambor de Mina.
O vídeo, com patrocínio da Natura Musical e produção executiva da Psica Produções, é o terceiro do álbum “Black Christ”, que traz Jesus mestiço e periférico, dentro de uma perspectiva nortista e afro-indígena. No disco, lançado em março deste ano, Daniel ADR traz a emblemática figura do salvador injustiçado e morto e dá a ele contornos de uma realidade crua, marcada pelo racismo e pela revolta, mas também repleta de pulsão de vida: paixão, fé, arte, vontade de subverter as estruturas de opressão e brilhar.
Misturando trap, drill e rhythm and blues, o disco marca os dez anos de carreira do artista e traz parcerias com nomes importantes e em ascensão da música urbana periférica do Norte do país, além de faixa com Lia de Itamaracá, mulher negra fundamental na cultura popular e a maior cirandeira do Brasil.
Maiara tem anos de pesquisa em vertentes musicais das culturas afro-diaspóricas
Joyce Cursino
Maiara convida pra gira
Mulher preta amazônida, Maiara Almeida convida para a gira com a canção e clipe “Minha Cura”. Dança, batuque, fé e cultura popular, do carimbó ao maracatu, celebram sua estreia em carreira solo, depois de muitos trabalhos junto a diversos grupos musicais.
Jovem cantora, compositora e multinstrumentista paraense, Maiara tem anos de pesquisa em vertentes musicais das culturas afro-diaspóricas. Percorreu diversos locais do Brasil em seus estudos sonoros, do Maranhão à Bahia, passando por regiões da Amazônia profunda.
Maiara Almeida nasceu em uma família de sambistas. Com os tios, aprendeu os segredos do pandeiro. Foi na linha daimista do Padrinho Sebastião e Mestre Irineu que firmou o seu ponto nas giras de carimbó e coco pelas ruas e praças da cidade. Integrante de diversos grupos, como o Carimbó Curuperé e o Tambor de Crioula Filhas e Amigos do Cururupú, Maiara é criadora do projeto Vozes de Fulô, formado por brincantes das periferias de Belém, e do projeto em Segredos do Terententen, onde compartilha seus aprendizados sobre canto popular e pandeiro em oficinas gratuitas para a comunidade.
É desta perspectiva, deste lugar de fala, existência e resistência, que Maiara Almeida apresenta “Minha Cura”.
“Através do toque do tambor, retornar para casa, se curar, se alimentar da ancestralidade. Essa música sintetiza tudo isso, a dança, as rodas de rua, a relação com a mata, que é de onde a gente tira o nosso tambor, os nossos instrumentos. Isso é muito forte e acho que poderia curar muita gente também”, diz.
“Minha cura” surgiu junto às águas doces de Cotijuba, onde Maiara forjou a música em parceria com Maykon Ubiraji, amigo de longa data. A canção traz uma base instrumental de regional brasileiro, guiada pela banda formada por Maiara no vocal e pandeiro; Kleber Benigno Paturi, na percussão; Marcelo Ramos, violão, baixo e bandolim; Flor de Mururé, Nala Leão e Ayo Sombra no backing vocal.
A canção dialoga com o samba, coco e maracatu. De arranjo forjado na música popular raiz e música popular contemporânea, a canção mescla elementos da música pop negra a instrumentos eletroacústicos e timbres eletrônicos, na busca de uma identidade sonora original.
Dirigido por Joyce Cursino, o clipe traz como protagonista todas as giras e movimentos dessa Amazônia preta e indígena. O projeto foi contemplado pelo Prêmio FCP de Incentivo à Arte e à Cultura, cujo objetivo é incentivar a produção artística e cultural paraense.
Serviço:
“Dona Mulambo”, de Flor de Mururé : plataformas digitais .
Assista o clipe “Afago de Oxum”, de Daniel ADR aqui. Ouça o disco “Black Christ” .
Confira o clipe “Minha cura”, de Maiara Almeida, aqui.
Dia de Luta contra a Discriminação Racial: artistas falam da fé preta na Amazônia e fazem da música oferendas a caboclos e orixás
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