
Em um país onde mais de 80% da população está conectada à internet, a troca de informações em tempo real tornou-se parte do cotidiano. Entre memes, notícias e alertas, uma prática comum tem gerado polêmica e levantado questionamentos legais: a divulgação de locais de blitzes policiais em grupos de WhatsApp e redes sociais. Afinal, essa conduta é crime?
Atualmente, não há uma lei federal que proíba, de forma direta e específica, a divulgação de blitzes. No entanto, o ato pode ser interpretado como ilícito, a depender das circunstâncias em que ocorre. O Código Penal prevê, por exemplo, os crimes de favorecimento pessoal (art. 348) e favorecimento real (art. 349), quando há a intenção de proteger ou beneficiar criminosos ao repassar esse tipo de informação.
A advogada Mylena Ebers Santiago explica ao Portal iG que, para que essas tipificações se apliquem, é necessário comprovar que houve vontade clara de burlar a autoridade pública e conhecimento prévio de que a informação beneficiaria alguém envolvido em conduta criminosa.
“Como as divulgações normalmente ocorrem em ambiente virtual e são direcionadas a um público indeterminado, torna-se difícil comprovar que o objetivo era ajudar alguém específico a fugir de uma abordagem. Nesses casos, a aplicação dos dispositivos penais encontra limitações”, observa.
E quanto ao crime de atentado contra serviço de utilidade pública?
Outro ponto levantado é a possibilidade de enquadramento no artigo 265 do Código Penal, que trata do atentado contra o funcionamento de serviço de utilidade pública. No entanto, a especialista afirma que esse entendimento não se sustenta juridicamente, já que blitzes policiais não se enquadram como serviços contínuos ou essenciais, como fornecimento de água ou energia.
“A realização de operações policiais é episódica e itinerante. Ainda que a divulgação da localização possa frustrar ações pontuais, não há um ataque concreto à segurança ou funcionamento desses serviços — tampouco dolo específico de comprometer a ordem pública”, pontua a advogada.
Diversas corporações policiais em todo o Brasil já se manifestaram contra a divulgação desses alertas, alegando que eles facilitam a fuga de criminosos e comprometem a eficácia de operações voltadas à repressão de delitos, como direção sob efeito de álcool ou transporte de entorpecentes.
A questão central que fica é o equilíbrio entre transparência e proteção social. Divulgar detalhes de operações de fiscalização pode, inadvertidamente, facilitar a ação de criminosos e comprometer a eficácia da lei.
Em casos mais extremos, já houve investigações contra administradores de grupos que compartilham sistematicamente a localização de operações, especialmente quando há indícios de associação com atividades criminosas.
Liberdade de expressão x segurança pública: qual prevalece?
Para Mylena Ebers Santiago, não cabe invocar a liberdade de expressão como argumento para justificar esse tipo de conduta, especialmente quando há um claro conflito entre direitos fundamentais.
“O direito à informação e à liberdade de expressão, previstos na Constituição, não podem se sobrepor à segurança pública. A atuação legítima do Estado para proteger a coletividade não pode ser frustrada por atitudes irresponsáveis”, afirma, em entrevista ao iG.
“Em situações de colisão de direitos, o intérprete do Direito precisa realizar um juízo de ponderação. E, neste caso, o interesse coletivo tende a prevalecer.”
E os aplicativos de navegação?
Plataformas como o Waze, que permitem aos usuários marcar a presença de blitzes, também estão no centro do debate. Embora o recurso não seja proibido por lei, já houve tentativas do poder público de dialogar com empresas para mitigar os possíveis efeitos negativos da funcionalidade.
A advogada destaca que, até o momento, decisões judiciais têm mantido o funcionamento desses aplicativos, reconhecendo sua contribuição para a mobilidade e segurança no trânsito. “Não há base legal para obrigar a remoção de alertas nesse tipo de app”, afirma.
Há projetos de lei sobre o tema?
Tramitam no Congresso Nacional projetos que propõem a tipificação da divulgação de blitzes como crime. Um deles é o PL 3734/2019, de autoria do senador Fabiano Contarato (PT), que prevê punição para quem compartilhar informações sobre local, data ou horário de fiscalizações de trânsito.
Outros projetos, como o PL 5596/2013, já foram aprovados em comissões e preveem multas a usuários e provedores de plataformas que permitirem esse tipo de divulgação. No entanto, redes sociais foram excluídas do texto, em respeito ao princípio da liberdade de expressão.
Debate em aberto e em evolução
Apesar de ainda não existir uma lei que criminalize, de forma clara, a divulgação de blitzes, especialistas reforçam que a prática pode gerar consequências legais, sobretudo quando houver intenção comprovada de obstruir ações da autoridade pública.
“Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”, lembra Mylena. “Mas enquanto essa lacuna legislativa não é preenchida, a orientação é agir com responsabilidade: o simples compartilhamento de uma mensagem pode parecer inofensivo, mas pode ter implicações graves.”