Descoberta no Paraná e desenvolvida por mais de três décadas, cultivar é protagonista na modernização da cafeicultura brasileira e associa alta produtividade com experiência sensorial excepcional. Café Arara: cultivar comparada ao ‘Geisha’ consolida vocação de SP para bebidas especiais
Representante da quarta geração de uma família de produtores rurais em Restinga (SP), na região de Franca (SP), Enison Lopes Ferreira Filho, o Eninho, de 35 anos, lida com café desde os 27. São quase 4 mil quilos de grãos por hectare, com uma produção que atingiu, em 2023, 232 toneladas, 70% delas destinadas a torrefações dos EUA, Europa e Malásia.
Em grande parte, essa produtividade e esse sucesso com compradores internacionais podem ser atribuídos à escolha de uma variedade que, nos últimos anos, tem quebrado a resistência de agricultores e ganhado terreno Brasil afora: o Café Arara.
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“Ele é muito bom, ele é brabo”, afirma Eninho, que não só demonstra na fala a empolgação pela cultivar pertencente à espécie Arábica quanto nas decisões que toma na lavoura. Para a próxima safra, ele já fez novos plantios, esperando resultados mais promissores.
Produção da variedade Arara consolida vocação paulista para cafés especiais
Rodolfo Tiengo/g1
Descoberta a partir de um cruzamento inesperado no Paraná e desenvolvida há quatro décadas a partir de iniciativas como a Fundação Pró-Café, a cultivar tem atraído cafeicultores tanto pela alta performance quanto pela qualidade elevada que a torna figura certa em competições especializadas e reforça a vocação da Alta Mogiana, no estado de São Paulo, para os cafés especiais.
Não é à toa que a cultivar chegou a ser apelidada de “Geisha brasileiro”, em um paralelo não unânime que parte dos especialistas faz com o café já considerado o melhor e mais caro do mundo, produzido na Etiópia.
“É um café que está se destacando muito na sua qualidade de bebida, com muita doçura e uma acidez cítrica muito equilibrada e sempre puxando para o lado dos frutados. Isso, naturalmente, sem nenhum processo. É um café que bebe muito bem na xícara” , acrescenta.
Para entender como o Arara surgiu e está transformando o mercado de bebidas especiais, o g1 ouviu especialistas, conheceu cafezais e, claro, degustou a bebida servida por um barista, que explicou as qualidade sensoriais do café.
Fruto amarelo em talhões de Obatã Vermelho
A busca pelo café ideal ao longo de 30 anos
Nutrição, irrigação: os cuidados de um café de alta performance
Na xícara, doçura e sabor reconhecidos
Cafés especiais: consumo e produção ascendentes
Fruto do Café Arara: amarelo, vigoroso e altamente produtivo
Fundação ProCafé
1.Fruto amarelo em talhões de Obatã Vermelho
Em 1986, uma imagem inusitada chamou atenção de um engenheiro agrônomo no Paraná, quando frutos amarelos e desconhecidos se destacaram em meio a talhões de café Obatã Vermelho, cultivar desenvolvida pelo Instituto Agronômico de Campinas (IAC) de alta produtividade e resistente à ferrugem.
“Francisco Barbosa Lima recebeu as sementes do IAC. (…) Ele fez um plantio de 300 plantas desse material e, para surpresa, apareceram no meio três plantas de fruta amarela. O normal era serem todas de fruto vermelho”, conta o engenheiro agrônomo José Braz Matiello, pesquisador da Fundação Pró-Café e apontado como um dos responsáveis pela modernização da cafeicultura brasileira.
Intrigados, pesquisadores de Varginha (MG), da Fundação Pró-Café, se debruçaram sobre isso e se impressionaram. “As plantas replicaram as características da planta original, mantendo boa produção e alto vigor”, explica Marcelo Jordão, diretor de uma fazenda experimental da fundação em Franca.
A variedade responsável por essa modificação, no entanto, até hoje não é certeira. Segundo Matiello, no início até se pensou que a nova cultivar pudesse ter ocorrido por conta de uma hibridização com o Catuaí Amarelo, mas isso não fazia sentido porque a nova variedade, diferente dessa, era resistente à ferrugem.
“Esse material deve ter cruzado com o Icatu 2944, porque o Arara apresenta muitas características semelhantes ao Icatu: o diâmetro da saia é maior, os ramos são mais grossos, o fruto é mais arredondado, o vigor é alto, essa é nossa opinião, com certeza esse material de Arara teve origem nesse híbrido natural”, afirma.
Mistérios à parte, o que de fato se sabe hoje está descrito no Catálogo de cultivares de café arábica: o café de frutos amarelos e maturação tardia rende grãos considerados grandes em árvores de vigor vegetativo alto com uma produtividade muito alta e uma bebida de qualidade diferenciada.
E é justamente por essa degustação acima da média e de uma pontuação que supera os 90 em alguns concursos que, no meio especializado, o Arara acabou comparado com o Geisha, grão etíope já apontado como o melhor do mundo. Mas com uma vantagem, ao menos na opinião de Matiello.
“É chamado de Geisha brasileiro porque é excepcional, semelhante a um Geisha. É excepcional, só que, além de ter boa qualidade, é muito produtivo, resistente, vigoroso. O Geisha não: tem boa qualidade, mas é pouco produtivo”, diz.
Marcelo Jordão, pesquisador de fazenda experimental da Fundação Procafé em Franca (SP)
Rodolfo Tiengo/g1
2.A busca pelo café ideal ao longo de 30 anos
Após a descoberta, as primeiras sementes daquela fruta foram enviadas à Fundação Pró-Café, onde pesquisadores como José Braz Matiello e Saulo Roque de Almeida conduziram estudos com o objetivo de verificar o potencial de produção e de sabor.
“Eles eram responsáveis pelo melhoramento genético do café na fundação. Propagaram essas sementes e foram realizando melhoramento genético, aprimorando as características desejáveis para o cafeicultor”, afirma Jordão.
Esse desenvolvimento ocorreu com experimentos, em que o Arara “competiu” com outras cultivares plantadas, com uma combinação de crescimento monitorado, seleção das melhores plantas a cada geração, que dura em torno de três anos, e replantio de sementes. “Eles pegavam as sementes dessas plantas melhores e propagavam novamente”, diz.
Ao fim, fizeram classificações de acordo com alguns critérios, entre eles:
produtividade
tamanho de grão
qualidade de bebida
resistência a doenças
Depois de anos de melhoramento genético em cima das matrizes enviadas do Paraná, em 2012, a cultivar foi inserida oficialmente no Registro Nacional de Cultivares.
A Fundação distribuiu a cultivar para várias regiões cafeeiras do país, não só com o objetivo de aprimorar o desenvolvimento da planta, como também de testar a capacidade de adaptação a diferentes condições climáticas.
Assim, apontaram que o café prosperou em solos de textura média, argilosa e arenosa, com irrigação, localizados a altitudes entre 500 e 1 mil metros.
Em um dos ensaios feitos, a fundação apontou que a produtividade média do Arara foi 39% maior do que a do Catuaí, usado como padrão para o comparativo. Mas nem só nesse aspecto ele se destacou: a resistência à ferrugem, uma das principais pragas da cafeicultura, também chamaria atenção, bem como a tolerância à phoma – doença causada por um fungo e que pode ocorrer desde a fase de mudas do café – e a pseudomonas, bactéria causadora de uma doença conhecida como mancha aureolada.
Pelos dez anos seguintes, a despeito da reação cautelosa de muitos agricultores acostumados ao Mundo Novo e Catuaí, o Arara passou por um processo de disseminação em lavouras de Minas Gerais, Bahia, Alta Mogiana e Espírito Santo, principalmente voltadas para a produção de grãos especiais, segundo Carmem Lúcia Chaves de Brito, a “Ucha”, presidente da Associação Brasileira de Cafés Especiais (BSCA).
Além da resistência a pragas e da elevada produtividade, pesou também a proporção, acima da média, dos grãos com tamanho mínimo para se enquadrar em um patamar de qualidade para exportação, a chamada “peneira 16 acima”.
“A gente vê que muita gente virou para o lado do Arara. Por quê? O material produtivo, resistente à ferrugem, o material que se desenvolve muito bem, com vigor impressionante, um material com peneiras altíssimas, um percentual de peneira 16 acima muito acima das médias das demais cultivares, bebida excepcional e muito consistente. Enfim, uma série de questões que obviamente fizeram com que o produtor se apaixonasse pelo Arara e houve realmente uma virada muito forte para plantios de Arara no Brasil todo”, afirma Carmem Lúcia Chaves de Brito, a “Ucha”, presidente da Associação Brasileira de Cafés Especiais (BSCA).
Carmem Lúcia Chaves de Brito, a “Ucha”, presidente da Associação Brasileira de Cafés Especiais
Divulgação
A maturação tardia também se soma a esses atributos como um diferencial para otimizar a safra, destaca Carmem, que também cultiva o Arara em sua propriedade rural, em Três Pontas (MG).
“Encaixa como uma luva: a gente aumenta a nossa janela de colheita, porque a maturação dele é mais tardia e eu acabo ficando tranquila, vou avançando com as cultivares que são mais precoces, mais medianas, e ele chega ao final, aumenta a janela de frutos maduros.”
3.Nutrição, irrigação: os cuidados de um café de alta performance
Com 6,4 mil habitantes, Restinga é um dos 23 municípios que compõem a Alta Mogiana, conhecida não só pela elevada produção cafeeira nos âmbitos paulista e mineiro, como também pelo aroma e pelo sabor frutado com notas de chocolate e nozes de seus cafés especiais, semeados geralmente acima dos 800 metros de altitude em terra roxa.
Uma área que produz, por ano, cerca de 2 milhões de sacas de café, entre cerca de 5 mil produtores, e que emprega mais de 125 mil pessoas, segundo estimativas da Associação dos Produtores de Cafés Especiais da Alta Mogiana (AMSC).
Por suas características consideradas únicas, desde 2013 os cafés produzidos na região têm indicação geográfica reconhecida pelo Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (Inpi).
Enison Lopes produz a cultivar Arara em Restinga, na Alta Mogiana Paulista
Rodolfo Tiengo/g1
Foi lá que a família de Eninho iniciou uma tradição cafeeira de 120 anos e onde o produtor rural decidiu plantar o café Arara em consórcio com árvores de mogno africano, para dar sombreamento ao cafezal nas horas certas.
Atualmente, ele tem 64 hectares plantados, com 70% destinados ao mercado externo e 30% para o mercado interno. De tudo que produz, quase a metade – 40% – é de Café Arara, que só perde para o Catucaí-2SL (45%). Acauã novo também compõe a lavoura, com 10% dos pés.
Eninho sempre teve em mente a necessidade de aliar alta produtividade, vigor, sanidade de planta, mercado, mão de obra qualificada e tecnologia. E tudo isso ele encontrou no Arara, dentro do que ele considera ser uma cafeicultura do futuro.
“Sempre tive na pele os desafios da cafeicultura. Eu buscava ferramentas para ter performance e resolver o problema do meu pai”, diz.
Desde que começou o plantio do Arara, a cultivar surpreendeu, com uma produtividade acima do Catucaí-2SL e um tamanho de fruto maior que a média, que melhora o rendimento. “É uma seleção que veio evoluindo, e é resistente a ferrugem, altamente produtivo.”
Ao mesmo tempo, também notou que era preciso estar atento a necessidades específicas não só na irrigação quanto no balanceamento na nutrição, especialmente no implemento de magnésio e de boro.
“Pede um nível agronômico e técnico dos produtores. Quem errar com ele vai pagar um preço caro, tem que saber lidar”, alerta o produtor de Restinga.
Fazenda com produção de café Arara em Restinga, na Alta Mogiana Paulista
Rodolfo Tiengo/g1
Mesmo assim, a alta performance e a qualidade proporcionada na xícara valem todo o esforço. “Nós fazemos o ajuste nutricional desse café, muito balanceado, sem deixar faltar nenhum nutriente e também sem deixar exceder.”
Para Carmem, presidente da BSCA, é justamente por conta desses cuidados extras em relação a outras cultivares como Mundo Novo e Catuaí, que o Arara, muitas vezes, foi alvo de desconfiança de muitos produtores. “Ele é um material que exige do produtor cuidados específicos pra ele, porque ele é diferente dos demais”, afirma.
Mas a lógica para ela é tão simples quanto entender o desempenho de um atleta: quanto maior o potencial de performance, maior a necessidade de atenção aos detalhes.
“Ele é um café tardio, altamente produtivo, é resistente, tem desenvolvimento de ramo, um vigor, uma coisa fora do comum. Então esse café, para te entregar tudo isso, tem que ter muita energia, tem que ser um atleta muito bem preparado. Eu vou exigir muito dele, porque tem muito pra me entregar”, diz.
Grãos torrados de Café Arara: cultivar movimenta mercado de bebidas especiais no interior de São Paulo
Rodolfo Tiengo/g1
4.Na xícara, doçura e sabor reconhecidos
O mesmo grão que o Eninho semeou e colheu com tanto cuidado na fazenda em Restinga vira um produto de alto valor agregado nas mãos e máquinas do engenheiro agrônomo e barista com certificação internacional Guilherme Meneses Nunes, de Franca (SP).
Consultor cafeeiro e especializado em avaliar as qualidades de cafés especiais, ele reconhece um padrão acima da média para a cultivar.
“A variedade do café manda muito, mas varia muito com a região. O Arara aqui na nossa região traz um café muito doce, com uma acidez média e um corpo bem intenso, ele é muito encorpado. (…) Gosto muito de usar nos meus cursos porque é um café muito fácil pra apresentar o que é café especial para as pessoas que não conhecem, porque já tem uma característica mais doce, encorpada e uma acidez média”, avalia.
Não é à toa que o café Arara é figura certa em competições internacionais entre baristas e cup tasters da Brazil Specialty Coffee Association (BSCA), a associação brasileira de cafés especiais.
Ao menos há sete anos, a variedade Arara tem figurado entre cafés inscritos no Cup of Excelence, considerado o principal concurso de qualidade de cafés do mundo e avançando à fase internacional em algumas edições, como em 2017, quando dois inscritos ficaram no top 10. Além disso, em campeonatos da Alta Mogiana a cultivar sempre está entre os três primeiros em qualidade.
Na 22ª edição do Concurso de Qualidade de Café da Alta Mogiana, realizada em 2024, 15 dos 106 cafés inscritos foram dessa variedade. Uma seleção que tem como requisitos básicos ter sido plantado em terrenos acima de 800 metros de altitude e atingir pontuações acima dos 80.
Amostra de 22ª Concurso de Qualidade de Café da Alta Mogiana
Divulgação/ catenacom
“Ele é muito utilizado, porque é um café muito complexo, muito doce, é um café mais usado para esse fim”, afirma o barista.
Guilherme, que também trabalha com vendas de produtos selecionados, sabe da importância do final dessa cadeia produtiva para garantir que todo aquele potencial sensorial esperado do Arara se converta em um prazer de degustação único na xícara.
Para isso, todo o detalhe faz a diferença, a começar pela temperatura e o nível da torra, tudo controlado por um equipamento de última geração, que monitora em tempo real o processo para que se chegue ao ponto ideal.
O método de extração também amplifica as qualidades do Arara. O bom e velho coador já dará um ótimo resultado – claro, lembrando-se de outras dicas como ter uma boa fonte de água e não deixá-la ferver – , mas em processos como a prensa francesa as sensações se modificam na boca. “É um método de infusão em que você consegue extrair ainda mais essa doçura e corpo.”
O barista Guilherme Meneses Nunes, de Franca (SP), atesta qualidade excepcional da cultivar Arara: ‘café muito doce, com uma acidez média e um corpo bem intenso’
Rodolfo Tiengo/g1
5.Cafés especiais: consumo e produção ascendentes
Por suas características, o café Arara atualmente é uma das variedades que ajudam a consolidar não só o estado de São Paulo como todo o país na produção da espécie arábica e no segmento de cafés especiais.
De acordo com dados divulgados em maio deste ano pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), o arábica corresponde a 79,8% das áreas em produção e formação no país, o que corresponde hoje a 1,83 milhão de hectares.
Produção de café especial na região da Alta Mogiana
Divulgação/ AMSC
Embora atrás de Minas Gerais – de longe o maior polo produtor do Brasil -, o estado de São Paulo tem uma projeção de acréscimo de 2,5% em área plantada e deve produzir, este ano, 5,6 milhões de sacas de arábica, mesmo diante de condições adversas como ondas de calor e incêndios.
São polos como esses que devem garantir 8 milhões de sacas de cafés especiais em 2024, com mais de 80% dedicadas à exportação e um consumo de 1,35 milhão de sacas, em alta de 15%, segundo estimativas da BSCA.
Ao lado de Bourbon – o que mais entrega cafés de alto padrão no país – e Paraíso – variedade ascendente no meio cafeeiro -, o Arara é uma das cultivares que se destacam no mercado brasileiro de bebidas especiais, de acordo com a BSCA.
“A cultivar Arara entrega isso pra gente e ainda com um toque de frutado”, afirma Eninho.
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