Inspeção penitenciária constata alimentação inadequada, ausência do banho de sol e dois óbitos, além de abuso do spray de pimenta e do ‘procedimento’ – ação implantada pela intervenção federal pós-‘Massacre em Altamira’. Seap afirma que ‘todas as medidas adotadas seguem a Constituição Federal’. Presidiários no Complexo Penitenciário de Santa Izabel do Pará em 2019.
Akira Onuma / Agência Pará
Vistorias feitas pela Conselho Penitenciário do Pará (Copen) e pela Defensoria Pública apontaram que presos do sistema prisional do Pará são submetidos à fome como tortura. Segundo o relatório, eles passam dias sem se alimentar, recebem marmitas com metade do peso indicado e até comida estragada. (Leia mais abaixo)
“A principal tortura é a fome. Não ter acesso à alimentação, querer ir ao banheiro e não poder, não poder levantar a cabeça para que nada aconteça é o que constatamos hoje nas cadeias do Pará. Temos presos que você olha e parece que estão em Auschwitz, num campo de concentração nazista, porque muitos estão muito magros”, diz Anna Izabel Santos, defensora pública e presidente da comissão de inspeção do Copen.
As vistorias foram feitas entre dezembro de 2022 e junho de 2023. As informações são sigilosas e estão em um relatório que foi entregue ao Estado. Ao g1, a defensora descreveu algumas das situações como presos que estavam horas sem comer e, depois, recebiam marmitas com 300 gramas — quando o ideal deveria ser 600 gramas. Além de alimento estragado.
No período das visitas, segundo Anna Izabel, foram constatadas ainda duas mortes.
A situação tem sido alvo de denúncia das famílias. Um dos presos que está na Cadeia Pública de Jovens e Adultos (CPJA), no Complexo de Santa Izabel, na região metropolitana de Belém, perdeu 50 quilos no último ano por causa da fome.
“Só não quero buscar ele morto de dentro da prisão”, afirma a esposa.
Procurada, a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap) disse que “todas as medidas adotadas (…) seguem as diretrizes, regras e resoluções de proteção dos princípios fundamentais da Constituição Federal”. (Leia abaixo o posicionamento completo)
Mortes
Em vistorias foram registradas duas mortes: uma delas em junho no presídio de Santarém e outra em dezembro de 2022 na CPASI.
No caso de Santarém, um laudo da Defensoria aponta atestou tortura como causa da morte. No CPASI, a morte ocorreu por ausência de atendimento médico.
“O detento estava passando mal, algo gástrico, e pedia atendimento médico, mas em vez de ser levado, foi espancado e morreu na cadeia. Já levaram ele do presídio para o pronto socorro do hospital municipal de Santarém morto, e é claro que foi por tortura, existe um laudo apontando a causa mortis como tortura”, informou a defensora, sem passar mais detalhes sobre a morte.
Sem comer e ir ao banheiro
Dentre as principais irregularidades apontadas pelo Copen, estão que os detentos são submetidos a horas sem alimento, e em baixíssima quantidade – segundo os relatos colhidos, há vários custodiados abaixo do peso; e ao banho de sol sem regularidade e ainda no chamado “procedimento” – quando os detentos são deixados em uma galeria agachados, com as mãos na cabeça, sem poder se levantar nem ir ao banheiro.
“Para sair ‘pro’ banheiro, tem que implorar pela misericórdia do guarda, ou ele deixa, mas dando pancadas, ou se ele ‘tiver’ estressado aplica spray de pimenta e manda fazer no chão”, relata detento da Colônia Penal Agrícola (CPASI), no Complexo de Santa Izabel.
Um custodiado, que está no regime aberto, afirmou em entrevista ao g1 que perdeu 19 kg em quatro meses em que esteve na unidade apontada como a mais lotada do estado: a CPASI. A casa penal de regime semiaberto tem capacidade para 870 pessoas, mas custodiava em abril deste ano quase o dobro da lotação máxima: 1.700, segundo a Defensoria Pública do Estado.
Na CPASI, os detentos são acordados às 4h30 para lavar as celas, apontam os relatos. Às 6h, são servidos “dois dedos de café e um pão duro, feito lá mesmo”.
Das 6h30 às 12h, eles passam pelo “procedimento” e depois recebem o almoço. O custodiado relata que no almoço (arroz, feijão e proteína) a quantidade de comida é insuficiente e que, algumas vezes, está com aspecto vencido. Já o jantar é ofertado às 18h.
“Uma vez eu não aguentava de fome, porque tinham cortado a farinha, aí na janta veio um macarrão com cara de azedo e eu tive que comer. Eu e vários outros na cela também passaram mal”, relata.
A última refeição seria uma ceia quando são servidos, de acordo com os relatos, “dois dedos de suco com três bolachas de água e sal”. No entanto, é apenas para os detentos em tratamento médico, segundo apurado pelo g1 Pará.
Alguns detentos relataram à inspeção penitenciária que ainda arriscam guardar parte do almoço para juntar com a janta, na tentativa de dormir sem a sensação de fome – mesmo isso não sendo recomendado devido ao risco de proliferação de insetos e o mau cheiro.
A empresa contratada pela Seap para fornecer alimentação no complexo foi procurada pela reportagem, mas não havia dado resposta.
‘Segurança é palavra de ordem na Seap’
A defensora Anna Izabel aponta que “a segurança tem sido a palavra de ordem dentro da Seap, considerando o temor das facções criminosas”, que atuam dentro do cárcere. “Mas é preciso aliar à questão da segurança outras situações, principalmente as relacionadas a direitos que são inegociáveis, como o banho de sol e a alimentação. Constatamos marmitas de 300 gramas, sendo que a quantidade são 600 gramas”, ela afirma.
As constatações de irregularidades nos presídios não vinham a público no Pará desde a pandemia de Covid-19, período em que o Copen estava inativo. Já a Defensoria continuou atuando nos presídios. Na época, também houve relatos de advogados e familiares que não tinham acesso aos detentos, além de torturas. Familiares relatam que precisavam mandar centenas de e-mails para conseguirem marcar visitas.
Antes disso, o Pará vivia uma crise no sistema penitenciário a partir do “Massacre em Altamira” – a segunda maior tragédia carcerária no Brasil, atrás apenas do episódio ocorrido no Carandiru, em São Paulo. Em Altamira, foram 62 mortos em uma briga de facções dentro da cadeia em julho de 2019 – 26 deles eram provisórios.
Após o massacre, uma Força-tarefa de Intervenção Penitenciária (FTIP) foi enviada a treze presídios da região metropolitana de Belém, onde fica o Complexo de Santa Izabel. Foi um ano e quinze meses de atuação, autorizada pelo então ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro.
FTIP atuando no Pará.
Reprodução / Susipe
Segundo o governo federal, à época da gestão de Bolsonaro, as forças do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) atuaram em ações conjuntas com a Secretaria de Administração Penitenciária (Seap), que era comandada por Jarbas Vasconcelos, atual secretário de Justiça e dos Direitos Humanos (Sejudh) no Pará.
Na intervenção, foram instalados procedimentos e rotinas, aumentado número de atendimentos das assistências previstas na Lei de Execução Penal e houve integração de atividades das demais forças de segurança pública nas ruas. Ao mesmo tempo, o Ministério Público Federal (MPF) apontava mais denúncias de torturas nos cárceres.
“Os agentes penitenciários foram profissionalizados e se tornaram policiais penais concursados, treinados pela força de intervenção federal, e com isso vem a prática do ‘procedimento’, só que nas inspeções recentes há denúncias de abuso desse procedimento”, explica a defensora Anna Izabel.
Policiais penais em treinamento no Pará.
Reprodução / Agência Pará
O Copen foi reativado em janeiro de 2022, reunindo representantes das Defensorias Públicas do Estado, da União, Ministério Público, Ordem dos Advogados (OAB), sociedade civil, conselhos ligados à área da saúde e autoridades do próprio governo do Estado. Desde então, denúncias já levaram ao afastamento de dois diretores de casas penais: um do presídio de Parauepebas, em 2022; e outro do Presídio Estadual Metropolitano (PEM) I em 2023.
Ao ser reativado, o conselho não era mais pertencente à Secretaria de Justiça e dos Direitos Humanos (Sejudh), mas agora atrelado à própria Secretaria de Administração Penitenciária (Seap), sendo presidida pelo então secretário Jarbas.
Oficialmente, o Copen é presidido atualmente pelo titular da Seap, o coronel da PM Marco Antônio Sirotheau. Na ausência dele, quem preside as sessões é o secretário adjunto coronel Luiz André Maués.
Garantia de direitos básicos
A defensora Izabel avalia que, “embora a questão das facções esteja se controlando dentro dos presídios no Estado e que a segurança tem sido priorizada, não há mais intervenção penitenciária no Pará”.
“O que a Seap precisa ver, e estamos alertando nesse novo contexto do Copen, é que já temos baixo índice de fugas e motins, então não há mais justificativa para que se negocie banho de sol, é preciso que o Estado cumpra esse direito e também melhore a alimentação”.
Ela também afirma que a visita de familiares, por exemplo, “tem melhorado recentemente”. “Os detentos eram proibidos até do abraço, hoje já há relatos de que voltaram, de que o tempo das visitas aumentou e que as crianças voltaram a participar das visitas”.
José Maria Vieira, da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Pará, entende que “é necessário que o Estado atue não só do ponto de vista da melhoria de infraestrutura, mas que cumpra corretamente a lei de execução penal, lei esta que coloca que as pessoas precisam ser tratadas de uma forma que visualizem a sua ressocialização”.
“Se deixarmos essas pessoas encarceradas em depósitos humanos, em condições degradantes, estamos potencializando a inserção dessas pessoas nas facções que tanto o Estado quer combater”.
O custodiado que perdeu 19 kg em quatro meses de regime semiaberto afirma que “a cadeia ainda é um inferno na terra”.
“Nem animal é tratado desse jeito, porque um cachorro se alguém bater recebe punição, e ali não, até mesmo quem tem faculdade e tenta reivindicar algo eles falam que ‘é acadêmico lá fora, aqui dentro tu é preso’ e é tratado como o lixo da sociedade, é uma coisa muito ruim mesmo”.
Já a esposa do detento que segue na CPJA diz que “não é sobre regalias a luta dos familiares de detentos, mas que eles venham pagar a pena sem sofrer essas violações, com o mínimo de dignidade humana”.
“Do jeito que está a tendência vai ser infelizmente despertar uma pessoa que pode sair até pior do que quando entrou no penitenciária, não tem ressocialização”.
O que diz o governo
A Seap disse, em nota, que “todas as medidas adotadas dentro dos presídios paraenses seguem as diretrizes, regras e resoluções de proteção dos princípios fundamentais da Constituição Federal” e que “não existe registro ou notificação de procedimento instaurado no Conselho Penitenciário (COPEN-PA) sobre morte de custodiado em Santarém ou sobre o peso de 300 gramas das marmitas oferecidas aos apenados”.
Em relação ao óbito registrado em dezembro de 2022, a Seap afirma que “a declaração emitida pelo Instituto Médico Legal (IML) aponta a causa da morte por parada cardiorrespiratória e insuficiência respiratória”.
Já o banho de sol, segundo a Seap, “é realizado de forma regular em todas as unidades prisionais, obedecendo aos padrões de segurança”.
“A Seap esclarece que todas as denúncias de violações contra custodiados recebidas pela Corregedoria Geral Penitenciária (CGP) são apuradas. Este ano, até o momento, foram instaurados 33 procedimentos, que estão em fase de instrução, onde há a escuta dos servidores e apenados envolvidos para a adoção das medidas que se fizerem necessárias”, afirma a secretaria.
Por fim, a pasta informou que “desde o início da atual gestão, em 2019, tem ampliado os investimentos na modernização e na humanização do cárcere, com diversas ações, como a criação de novos espaços de oficinas de trabalho, salas de aula e laboratórios de informática, além do incremento de quase 3 mil novos policiais penais desde 2019, sendo 1.8 mil novos agentes empossados só este ano”.
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