Entenda o caso da aposentada dada como morta em naufrágio no Pará, e que deu até entrevista durante resgate de vítimas: ‘indignação e sofrimento’


Uma ação do MP que apura as responsabilidades do naufrágio, que deixou 23 mortos, segue sem data para audiência de instrução e julgamento do comandante por ‘falta de informações sobre as vítimas’. O g1 apurou que 16 delas sequer aparecem na denúncia apresentada à Justiça. Dona Diva sobreviveu ao naufrágio em Cotijuba, após ter perdido a filha e a neta. Na denúncia que apura responsabilidades do caso, ela foi dada como morta.
Reprodução / TV Globo
A aposentada Diva Assunção Seabra Oliveira havia acabado de perder a filha e a neta após sobreviver ao naufrágio, próximo à ilha de Cotijuba, no Pará, em setembro 2022. As duas estão entre as 23 vítimas que morreram na tragédia. À época, dona Diva chegou a dar entrevistas relembrando sobre os últimos momentos de vida da neta: ‘ela lutou muito’ – relembre no vídeo abaixo. No entanto, na ação que apura as responsabilidades pelo naufrágio, Diva aparece na lista de óbitos.
Relembre entrevista dada por sobrevivente sobre naufrágio em Cotijuba
Diva Oliveira, de 69 anos, diz que na mesma semana do naufrágio da embarcação prestou depoimento à polícia e entregou sua documentação. Segundo a aposentada, o mesmo procedimento foi feito no Ministério Público.
“Eu soube por outras pessoas que meu nome era dado como uma das vítimas que morreu. Eles falaram que iriam organizar essa situação, mas isso não ocorreu. Nesta última terça (8) se passaram oito meses do acidente e ainda estamos sem resposta”, afirma.
A aposentada teve três filhas: Mônica, Mayara e Brenda. Brenda Nayara Seabra Oliveira, de 35 anos, e sua filha, Lívia Vitória Oliveira Seabra, de 2 anos, viajavam com a avó, Diva, e não sobreviveram ao naufrágio.
“Iindignação e sofrimento por tudo isso. Perdi minha filha e minha neta. Sofro muito e isso tem sido um período muito difícil pra mim. Tenho uma revolta por tudo isso e parece que não estão dando o devido valor pelo que estamos passando, ainda mais nesse mês que é Dia das Mães”, diz.
Atualmente, Diva Oliveira e o marido fazem tratamento psicológico. No dia do acidente, ela, a filha e neta vinham para Belém em busca de consulta médica.
Diva e as três filhas: Mônica, Mayara e Brenda.
Divulgação
“Nossa sensação é de total indignação pela demora do julgamento e com todos esses erros apresentados desde início”, diz a filha, Mayara Seabra.
“A luta que estamos enfrentando até agora só tem sido colocada de lado, tanto que o nome da minha mãe, Diva Seabra, aparece como vítima fatal, então por aí já se vê que o processo está todo cheio de falhas e erros”, conta Mayara.
O g1 apurou que, na referida ação contra o comandante da lancha Marcos de Souza Oliveira, um dos sobreviventes foi dado como morto, no caso a dona Diva, e que, dos 23 mortos, dezesseis vítimas ainda não tiveram laudo de morte anexado na denúncia apresentada pelo promotor Edson Augusto Cardoso de Souza à Justiça. Enquanto isso, a audiência de instrução e julgamento de Marcos segue sem nova data.
Mayara relata, ainda, que vê as remarcações de audiências “como reflexo de destrato em relação aos familiares”.
“O poder público não está dando a devida importância para esse caso começando pela Polícia Civil, que não fez seu trabalho de inquérito policial com cuidado e respeito; não acrescentou documentação das vítimas fatais e todos sabiam que eram 23 vítimas. O MP está lento, são oito meses para verificar tudo isso, precisamos de respostas”.
Mayara defende que fosse criada uma força-tarefa para agilizar os trabalhos. “O MP ainda pediu cautela quando o Marcos de Sousa retirou a lancha sem autorização e ficou por isso mesmo, até então a Justiça está sendo favorável ao réu. Nós, familiares, seguimos sem resposta e sofrendo”.
O motivo do imbróglio é a ausência de informações sobre as vítimas, segundo o próprio Ministério Público do Pará (MPPA).
O órgão informou, na terça-feira (9), que a Promotoria de Justiça do Tribunal do Júri “pediu o adiamento da audiência por conta da falta de documentos das vítimas e dos sobreviventes visto que não há como o processo seguir sem a identificação das pessoas”.
Segundo o MP, para que “novas testemunhas e familiares sejam incorporados ao processo, é necessário entrar em contato com a Polícia Civil e a informação chegar ao MPPA”.
Enquanto isso, a lancha, que foi retirada do rio sem autorização e sem passar por perícia, está desaparecida. O comandante Marcos de Souza Oliveira está em liberdade, por determinação da Justiça. A defesa de Marcos não havia se manifestado até a publicação da reportagem.
Diante da inércia, familiares de vítimas que morreram e sobreviventes iniciaram uma busca por novas testemunhas para compor a lista de todos que estavam na lancha, a fim de elas entrarem no caso.
Quem são os mortos?
Da lista de mortos no naufrágio, apenas 8 pessoas estão citadas na denúncia do MP, sendo que uma está viva – veja na lista:
Idelerme José Pereira Pamplona (vítima morta)
Enzo Guilherme Silva Souza (vítima morta)
Gabriele Franklin dos Santos Lopes (vítima morta)
Hayane Franklyn dos Santos Lopes (vítima morta)
José Luis Rodrigues da Silva (vítima morta)
Maria América Pantoja (vítima morta)
Brenda Nayara Seabra Oliveira (vítima morta)
Diva Assunção Leal Seabra Oliveira (vítima sobrevivente, dada como morta)
Outros 16 nomes de vítimas mortas, levantados pelos próprios sobreviventes, não constam nos autos do processo, são eles:
Ananda Luíza Barreto Da Silva
Dalva Tereza Batalha Cabral
Edinéia Carneiro Campos
Erzeli Maria Dos Santos
Guilherme Vasconcelos Assunção
Izidoria Barbosa Assunção
Jameson Márcio Pimentel De Souza
Lídia Valentim Favacho
Lívia Vitória Oliveira Seabra
Maria Da Conceição Alcantara Leal
Maria Da Conceição Clemente Da Silva
Maria De Fátima Do Nascimento Conceição
Marília Gonçalves De Souza
Sebastião Ferreira Pacheco
Sival Lopes Da Costa
Sofhia Loren Andrade Dos Santos
Ainda não se sabe o motivo dos laudos cadavéricos ainda não terem sido anexados à denúncia. O MP e a Polícia Científica foram procurados, mas até a publicação da reportagem não tinham dado respostas.
Segundo familiar de uma vítima, ouvida pelo g1, ao liberar o corpo do parente, foi feita identificação junto ao Instituto Médico Legal (IML), entregue o laudo, mas a pessoa afirma não ter sido chamada para depor na delegacia. Ela não soube informar se outras famílias também não foram orientadas.
A denúncia
Segundo o MP, a embarcação saiu do porto do Camarazinho, em Cachoeira do Arari, na ilha do Marajó, e naufragou com mais de 50 passageiros. Ao menos 80 pessoas estavam na embarcação, segundo os próprios sobreviventes.
A denúncia aponta que a lancha passou já superlotada por outros dois portos, onde mais passageiros subiam, sob protesto dos passageiros que já estavam na embarcação.
O MP ainda traz relatos de passageiros, afirmando que, na hora do naufrágio, tentaram pegar coletes, porém Marcos de Souza Oliveira teria dito que não havia necessidade.
Em outros depoimentos, vítimas apontaram que Marcos teria ligado para a mãe, proprietária da lancha, em vez da Capitania dos Portos. Ainda segundo os relatos, não havia coletes salva-vidas suficientes para todos.
O MP conclui defendendo que Marcos seja julgado por homicídio doloso, já teria assumido o risco de produzir várias mortes ao planejar e conduzir a viagem.
Entre as conclusões do MP estão que:
a embarcação operava de forma clandestina;
equipamentos de segurança, como os coletes, estavam irregulares;
responsável não orientou passageiros no momento do naufrágio;
número de passageiros estava sem controle, já que não havia lista.
Cartaz no protesto que pede Justiça pelas vítimas do naufrágio que ocorreu em setembro de 2022, em Cotijuba.
Reprodução / TJPA
O naufrágio
A embarcação Dona Lourdes II saiu da ilha de Marajó para a capital paraense, no dia oito de setembro de 2022 com mais de 80 passageiros. O barco afundou perto da Ilha de Cotijuba e matou 23 pessoas.
O veículo não tinha autorização para navegar e partiu de um porto clandestino. Também não havia lista oficial de passageiros, segundo a Secretaria de Segurança do Pará (Segup).
Após naufrágio na região de Belém, praia na Ilha de Cotijuba estava sendo usada para receber resgatados nesta quinta-feira
Redes sociais/Reprodução
Muitos sobreviventes relataram que o condutor da embarcação é o maior culpado por ter demorado a chamar socorro quando o barco começou a afundar, além de não orientar os passageiros e não distribuir os coletes salva-vidas.
Sobreviventes apontaram que os salva-vidas não teriam condições de uso — muitos se rasgavam. Alguns pescadores que ajudaram no resgate encontraram pessoas já sem vida com colete.
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