‘Tirei o curativo e percebi que estava muito inflamado’: veja relatos de pacientes que perderam olhos após cirurgias no PA

De 81 pessoas que realizaram procedimentos em uma clínica de Belém que atende pelo SUS, 24 tiveram infecção bacteriana, e pelo menos 10 ficaram cegas, segundo secretaria de saúde. Pacientes que perderam olho após cirurgias de cataratas no Pará
Reprodução
Ao menos 24 pacientes que fizeram cirurgias de glaucoma, catarata e outros problemas oculares, em uma clínica que presta serviço ao Sistema Único de Saúde (SUS) em Belém, sofreram infecções bacterianas. Entre elas, ao menos 10 ficaram cegas, segundo o secretário municipal de Saúde, Pedro Anaisse.
“Preliminarmente, a informação que temos é que foram dez pessoas, mas eu não tenho como dizer de forma definitiva, ainda está sendo levantado isso”, disse.
As cirurgias foram feitas em 12 de junho e 1° de julho de 2024, e reuniram cerca 81 pacientes que tinham o desejo de enxergar melhor após o procedimento.
Apesar do quantitativo de cirurgias em um único dia, os procedimentos não integravam um mutirão: “As cirurgias não faziam parte de um mutirão, eram procedimentos de rotina realizados na clínica semanalmente”, afirmou a secretaria de saúde de Belém.
A Clínica Oftalmológica investigada é a São Lucas e fica localizada no distrito de Icoaraci, na região metropolitana de Belém.
Segundo a própria clínica, as vítimas tiveram endoftalmite, uma inflamação aguda no globo ocular causada por uma bactéria que pode ocorrer pela falta de esterilização de instrumentos cirúrgicos, ou pelo uso de materiais contaminados. O centro cirúrgico da clínica foi interditado pela Vigilância Sanitária na sexta (18).
O g1 reuniu relatos de algumas das vítimas infectadas e que perderam a visão após a cirurgia.
Veja, abaixo, relatos de pacientes:
‘Passava muito mal, meu olho inflamava’
Benedita da Costa, paciente que perdeu a visão após cirurgia no Pará
Reprodução/TV Liberal
A cozinheira Benedita da Costa participou no dia 1 de julho de 2024 de um mutirão de cirurgias na clínica. No dia seguinte ao procedimento, ela começou a sentir dores e resolveu voltar ao local.
“Passava muito mal, meu olho inflamava e eu voltava e quando eu cheguei lá encontrei relato de que muitas pessoas que estavam no mesmo processo que o meu. A maioria já estava com amputação”, relembrou.
“(Eles informaram) que poderia ser um de nós que tivesse levado a bactéria ou nós mesmo dentro de casa sem saber cuidar direito que poderia ter pegado a bactéria”, disse ela.
Segundo a paciente, que perdeu o olho esquerdo, desde que se operou, ela não consegue mais sair de casa e fica completamente isolada.
‘Problemas começaram no dia seguinte à operação’
Doralice Araújo, paciente que perdeu olho após cirurgia no Pará
Reprodução/TV Liberal
A dona de casa Doralice Araújo se submeteu a uma cirurgia na mesma clínica em julho. Os problemas começaram no dia seguinte à cirurgia. Ela perdeu o globo ocular esquerdo.
“Foi feita a limpeza cirúrgica e propuseram um transplante de córnea, mas três dias depois simplesmente não teve condições, a inflamação estava muito forte”, contou.
‘Pano cirúrgico fedia’
Albanize Soares, paciente que perdeu olho após cirurgia no Pará
Reprodução/TV Liberal
Para a dona de casa Albanize Soares, de 65 anos, a rotina tem sido difícil desde que perdeu a visão. Ela é uma das pacientes que precisou retirar o globo ocular, também do lado esquerdo.
“Eu passei pela cirurgia, fiz limpeza duas vezes e não deu certo, então tive que retirar o olho por conta dessa bactéria”, relatou.
A filha da vítima revelou que a clínica São Lucas estava suja, com lixo e até uma barata morta no chão. “Minha mãe relatou que o pano cirúrgico colocado no rosto dela fedia muito”, disse.
Imagens de dentro da clínica mostram sujeira no chão e barata morta.
Arquivo pessoal
“A minha mãe vai usar uma prótese. A vida dela nunca mais vai ser a mesma. Eu tenho uma mãe que tem medo de sair na rua. Ela era uma pessoa totalmente independente e agora ela depende dos filhos”, disse a filha de Albanize.
A dona de casa aguarda por uma prótese prometida pela clínica onde realizou o procedimento. Ela entrou com uma ação judicial contra o estabelecimento.
‘Tirei o curativo do olho e percebi que estava muito inflamado’
Ari Mesquita, paciente que perdeu olho após cirurgia no Pará
Reprodução/TV Liberal
O fotógrafo Ari Mesquita perdeu a visão do olho esquerdo depois de fazer a cirurgia em junho para tratar a catarata.
“Na manhã seguinte, eu tirei o curativo do olho para começar o tratamento com o colírio e percebi que estava muito inflamado meu olho”, contou.
Centro cirúrgico interditado
Centro cirúrgico de clínica oftalmológica é interditado após dezenas de pacientes terem sequelas e perderem a visão, na Grande Belém
Prefeitura de Belém
Na sexta-feira (18) uma segunda vistoria da Vigilância Sanitária de Belém confirmou irregularidades e descumprimento de exigências na Clínica São Lucas que tinham sido exigidas na primeira vistoria.
O centro cirúrgico da clínica foi interditado de forma cautelar temporária e também o Centro de Material e Esterilização (CME). O processo é apurado sob sigilo pela polícia.
De acordo com a Sesma, a interdição cautelar foi motivada pelas seguintes infrações sanitárias:
não cumprimento dos protocolos de segurança do paciente, como a higienização das mãos para controle de infecções;
falta de comprovação do reprocessamento (limpeza e esterilização) dos instrumentais levados pelos médicos para realização dos procedimentos cirúrgicos na clínica;
e estrutura física incompatível com o número de cirurgias realizadas.
A Sesma informou ainda que “o bloco cirúrgico e o CME permanecerão interditados até que sejam atendidas as exigências da autoridade sanitária municipal”.
A Polícia Civil do Pará disse, em nota, que o caso foi encaminhado à Delegacia do Consumidor (DECON), vinculada à Divisão de Investigação e Operações Especiais (DIOE), que solicitou perícias e está ouvindo testemunhas.
Em nota, a clínica informou que atua de forma regular, que “cumpre os protocolos de prevenção e controle de infecção hospitalar, visando minimizar os riscos de contaminação” e que está trabalhando com especialistas e autoridades para investigar e prestar apoio aos pacientes” – veja a nota completa ao final.
O Conselho Regional de Medicina (CRM) informou que o local tinha autorização para funcionar e que investiga a conduta ética dos profissionais. Já a Polícia Civil apura se houve exercício irregular da medicina.
Infecções
Evolução da infecção da paciente idosa após a cirurgia de catarata na clínica.
Arquivo pessoal
O que diz a defesa das vítimas?
De acordo com Cássio Souza, advogado de 11 das vítimas, 16 pessoas precisaram retirar um dos olhos. O advogado faz a defesa de três dessas pessoas.
A Secretaria Municipal de Saúde (Sesma) informou que foram dois dias de procedimentos, sendo que um deles resultou nas reclamações dos pacientes.
“No dia 12 de junho, foram atendidos 41 pacientes, dos quais dois tiveram intercorrências. No dia 1º de julho, foram realizadas 40 cirurgias de catarata, e 22 pacientes apresentaram intercorrências”, informou a Secretaria em nota.
As vítimas afirmaram que os primeiros sintomas da infecção surgiram poucos dias depois das operações.
O que dizem a Polícia e os órgãos fiscalizadores?
A Polícia Civil (PC) informou que a delegacia de Icoaraci apura o crime de exercício irregular da medicina e venda casada após acionamento do Ministério Público, e que outro caso registrado na delegacia da Pedreira também é apurado pela unidade de Icoaraci.
O Conselho Regional de Medicina do Estado do Pará (CRM-PA) disse que tomou conhecimento da situação ocorrida na Clínica São Lucas envolvendo os pacientes, os quais, após procedimento cirúrgico, ficaram com graves sequelas e que fiscalizou a clínica presencialmente na última quarta-feira (16).
Segundo o vice-presidente do Conselho Regional de Medicina do Pará, Lauro Barata, um relatório será encaminhado as autoridades competentes para adoção das medidas necessárias.
“Apareceram situações que nos deixaram preocupados, ou seja, a presença de formol envolto em gases jogados no chão, uma máquina de lavar dentro do centro cirúrgico, que não tinha até mesmo o preenchimento adequado e físico dos pacientes que tinham sido operados naquele dia, no autoclave não apresentava nada relacionado ao tempo de esterilização”, relatou sobre a visita do CRM no local.
A Secretaria Municipal de Saúde (Sesma) afirmou que a clínica será notificada em razão das ocorrências e que os serviços serão preventivamente suspensos.
A Vigilância Sanitária do município realizou uma inspeção preliminar no local na terça-feira (15), autuando o estabelecimento por três infrações: a não notificação dos eventos adversos à Vigilância Sanitária Municipal na época dos ocorridos, nos meses de junho e julho; a ausência de um núcleo de segurança do paciente; e a falta de registros de esterilização dos instrumentais cirúrgicos levados por médicos para a clínica.
Posicionamento da clínica
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Em nota, o advogado que representa a Clínica e Maternidade São Lucas informou que as cirurgias não foram feitas por qualquer mutirão. Todas foram realizadas “a partir de prévias consultas médicas com todos os pacientes”.
A defesa da clínica disse que todas as cirurgias ocorreram no mesmo dia e que cada procedimento realizado durou de 10 a 15 minutos de duração.
O advogado ainda reforçou que o espaço atua de forma regular perante os órgãos de fiscalização e que “cumpre rigorosamente com os protocolos de prevenção e controle de infecção hospitalar, visando minimizar os riscos de contaminação”.
“Estamos trabalhando em estreita colaboração com especialistas e autoridades em saúde para investigar cada caso individualmente e prestando todo o suporte necessário aos pacientes e familiares, inclusive em relação a pacientes com ações judiciais em curso”, pontuou.
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