Denúncias que expõem ausência da garantia de direitos da população LGBTQIA+ foram repassadas ao Ministério Público Federal. Órgão cobra prefeitura de Belém, Governo do Pará e reitoria da UFRA para buscar soluções. Movimento LGBTQIA+ denuncia violações na saúde, na educação e no cárcere no Pará.
Reprodução / TV Liberal
Uma audiência pública com membros do movimento LGBTQIA+ no Pará expôs várias violações de direitos humanos cometidas contra esta população na saúde, na educação e até no cárcere.
Entre as denúncias estão a negativa da oferta de medicamentos contra o HIV – vírus causador da AIDS; a transferência de pessoas trans e travestis para presídios onde estão criminosos de facções; e uma polêmica apuração sobre o uso de banheiros por pessoas transgêneras dentro de uma universidade federal em Belém.
A reunião, que ocorreu em setembro envolvendo órgãos como os Ministérios Público Federal e Estadual e as Defensorias do Estado e da União, culminou em ofícios para cobrar medidas efetivas da Prefeitura de Belém, do Governo do Pará e da reitoria da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA). Os documentos foram enviados entre 16 e 20 de outubro, segundo o MPF, com prazo de 15 dias para resposta – entenda mais sobre eles ao final.
O procurador regional dos Direitos do Cidadão no Pará, Sadi Flores Machado, afirma que a população LGBTQIA+ já sofre no Brasil com um “histórico lamentável de violações de direitos, homicídios motivados pela orientação sexual, casos de transfobia e homofobia, e não só violência física, mas também violência simbólica com frases ofensivas praticadas, muitas vezes, tendo o violador a crença na impunidade dos seus atos”.
“Por essa razão a audiência pública foi uma ocasião para colher demandas e ouvir a população mais diretamente afetada por essas violações de direitos”.
Machado explica que foram colhidas várias denúncias que mostram que “a sociedade ainda está muito longe de ser verdadeira igualitária, respeitando direitos decorrentes da orientação sexual, da identidade de gênero de cada um”.
Nesta reportagem, o g1 Pará ouviu diversas lideranças do movimento LGBTQIA+ para entender como ocorrem essas violações reunidas pelo MPF, a partir de relatos que partiram das filas para obter tratamento contra HIV, de dentro do cárcere e de um restaurante universitário.
Violações na saúde
A capital Belém tem os piores índices sobre o HIV entre todos os municípios brasileiros com mais de 100 mil habitantes. Em segundo lugar, está Castanhal, também no Pará. O ranking referente ao período de 2017 a 2021 consta no mais recente boletim epidemiológico do Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis, vinculado ao Ministério da Saúde.
Apesar da posição, a capital paraense tem apenas um local para tratamento: o Centro de Atenção à Saúde em Doenças Infecciosas Adquiridas, conhecido como Casa Dia, que fica na av. João Paulo II, próximo à Ponte do Galo, uma área considerada de risco. O local também recebe pacientes de outros municípios vizinhos como Ananindeua e Marituba.
Um outro espaço em Belém oferece apenas testes de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) – o Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA), localizado na tv. Rui Barbosa, no bairro do Reduto.
No entanto, a Casa Dia enfrenta um cenário de descaso, segundo usuários ouvidos pela reportagem.
Há falta de espaço adequado; precariedade no atendimento – profissionais da saúde indo dias sim outros não; desorganização quanto às datas, o que gera filas, além do atraso na entrega de medicamentos aos pacientes – o que provocou a denúncia de negativa de oferta do tratamento, registrada pelo MPF.
“É uma luta muito grande chegar na Casa Dia para marcar a consulta, o exame, depois conseguir o remédio, tudo isso numa corrida pela sobrevivência, mas que infelizmente nunca tem fim. O espaço é precário, ouvimos muito ‘não’ e nem recebemos o tratamento e atenção que toda essa vulnerabilidade precisa”, relata paciente de Belém que convive com HIV há quase 6 anos.
Usuários do Centro de Atenção à Saúde em Doenças Infecciosas Adquiridas (Casa Dia) promoveram protesto em frente à sede do espaço, na avenida Pedro Álvares Cabral, no bairro da Sacramenta, em Belém. Os manifestantes explicaram que a Casa Dia sofreu três assaltos em um período de 45 dias.
Thiago Gomes / OLiberal
O espaço também tem histórico de falta de segurança adequada. Segundo usuários, a guarita já esteve sem seguranças, e os funcionários dos serviços gerais também não estavam atuando.
No último dia 21 de agosto, um vídeo feito na Casa Dia exibe como ficou a unidade de atendimento após uma invasão de assaltantes. Os bandidos levaram equipamentos de data-show, computadores, frigobar e até botijão de gás. O atendimento teve de ser suspenso.
Vídeo expôe situação da Casa Dia, em Belém, após invasão de assaltantes
O g1 fez contato com a prefeitura de Belém desde a última quarta-feira (25) sobre as denúncias apresentadas pelo MPF, mas não havia obtido resposta até a publicação da reportagem.
Violações no cárcere
A ativista Lana Larrá, do Comitê Gestor de Segurança Pública e Combate a LGBTIFobia Pará, esteve no Centro de Recuperação do Coqueiro, em Belém, em uma vistoria representando a sociedade civil. Ela relata cerca de 150 pessoas LGBTI são custodiadas na unidade prisional, mas 56 delas foram transferidas para o Complexo Penitenciário em Santa Izabel do Pará. No local, há presos mais perigosos, como membros de facções criminosas ligadas ao tráfico.
“Os relatos lá do complexo tem sido de violações, de falta de atendimento médico, as coisas que os familiares levam e não chegam até as pessoas privadas de liberdade. Os familiares ficam sem informações dos parentes. No CRC as condições já são precárias, sem dignidade, mas as violências tem sido maiores a partir dessa transferência”.
“Há falta de respeito ao uso do nome social, uso de balas de borracha dentro das celas com as pessoas dentro, apanham sem motivo. Além disso, ficam sem itens de higiene, alimentação, roupa íntima, etc”.
Ativista Lana Larrá durante vistoria no Centro de Recuperação do Coqueiro, em Belém.
Arquivo Pessoal
A comida no presídio também não é adequada. Há relatos de comida vencida. “No dia que visitamos o CRC, a comida estava boa, quente, mas segundo as pessoas privadas de liberdade geralmente não é assim”.
A visitação ao CRC foi acompanhada por servidores da Secretaria de Administração Penitenciária, conduzindo os representantes do comitê, que puderam acompanhar as atividades e o bloco carcerário onde estava alocado o público LGBTQIA+.
Já no Complexo de Santa Izabel, que possui mais restrições com segurança mais reforçada, ainda não houve vistorias com a sociedade civil desde que cerca de 50 pessoas LGBTI foram transferidas para o local em agosto.
Violações na educação
Estudante da Ufra, a ativista e artista Emilly Cassandra expôs ao MPF uma polêmica apuração interna e sigilosa na Ufra envolvendo o uso do banheiro feminino por pessoas trans no restaurante universitário. O registro feito pela instituição cita “que homens estariam usando o banheiro feminino”.
Emilly considera que o registro é um ataque às pessoas trans. “A partir dessa denúncia a Ufra iria averiguar e tomar medidas cabíveis, até talvez abrir um chamamento público para opinião dos discentes, o que pode resultar em violência aos direitos humanos de travestis e trans dentro de uma universidade pública”.
“Essa situação, além de violentar direitos, poderia acarretar no impedimento futuro sobre uso do banheiro. Eu como estudante travesti não poderia deixar de denunciar essa barbaridade”.
Restaurante universitário da Universidade Federal Rural da Amazônia, a Ufra, em Belém.
Reprodução / UFRA
Há anos o Supremo Tribunal Federal (STF) ainda não fez entendimento sobre crime quanto à proibição ou uso de banheiro por pessoas transgêneras, o que segundo Emilly estava sendo usado como justificativa dentro dos autos do processo pela Ufra.
Procurada pela reportagem, a instituição não se posicionou sobre o referido processo e disse que a denúncia “é falsa e caluniosa, porque não há qualquer proibição ou orientação quanto ao uso dos banheiros institucionais pela população LGBTQIAPN+”.
Ainda na nota, a UFRA disse que “repudia qualquer ato discriminatório e apoia os processos de luta e os avanços na garantia de direitos em todos os espaços da sociedade”.
Medidas
As três situações pautaram três ofícios enviados à Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Pará (Seap), à Prefeitura Municipal de Belém e à Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra) com pedidos de informações.
Os documentos foram assinados pelo procurador Sadi Flores Machado, e pelas procuradoras da República Nathalia Mariel Ferreira de Souza Pereira e Isadora Carvalho com seguintes pedidos:
À Seap/PA
– informações sobre a “transferência discriminatória” de custodiados LGBTQIAPN+ do Centro de Recuperação do Coqueiro para o Centro de Recuperação Penitenciária do Pará, onde não haveria suporte para a referida população;
– sobre a construção de estabelecimentos ou alas de custódia específicos para a população LGBTQIAPN+, dadas características e especificidades.
À Prefeitura Municipal de Belém
– informações sobre negativa de oferta de medicamentos preventivos e terapêuticos a pessoas que convivem com HIV/Aids e a outros usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) na Casa DIA;
– sobre a instituição e a estrutura do local estarem deterioradas, que envie relatório descritivo-fotográfico das dependências, inclusive, da farmácia e do depósito de guarda de medicamentos (com fotos do estoque).
À Ufra
esclarecimentos sobre denúncia de que na universidade existe procedimento (regra ou orientação) para impedir que estudantes transgênero utilizem banheiros adequados às suas identidades.
Sobre a transferência de custodiados, o MPF disse ainda que alertou e solicitou providências à Supervisão do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Tribunal de Justiça do Pará (TJPA), à Vara de Execuções Penais da Região Metropolitana de Belém e à Promotoria de Execução Penal de Penas e Medidas Alternativas de Belém.
“É imperativo num país democrático e republicano como o Brasil que seja respeitada a igualdade de direitos e a dignidade humana”, afirma o procurador Sadi Machado.
Segundo ele, os pedidos visam não só obter informações, mas também possibilitar a correção dos rumos de medidas que podem estar sendo adotadas de maneira equivocada. “A intenção é, através do olhar técnico jurídico, facilitar e possibilitar que agentes públicos possam eventualmente adotar medidas para sanar, corrigir as violações de direitos e evitar que elas se repitam a fim de garantir que esses direitos sejam respeitados, principalmente pelo Poder Público”.
Movimento LGBTQIA+ no PA denuncia falta de acesso a tratamento contra HIV, violações em presídios e discriminação no uso de banheiros em universidade
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