Santa cabocla, revolução cabana, defesa da floresta: tradicional cartaz do Círio ganha releituras de artistas da Amazônia


Tradicional elemento do Círio, cartaz é confeccionado desde o começo do século 20, e ganha versões que revelam a estética amazônica, mitologias e tensões socioambientais que atravessam os povos da floresta. Cartazes do Círio ganham versões autorais de artistas da Amazônia
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O tradicional cartaz do Círio de Nazaré, que anualmente invade os lares do Pará com a identidade visual oficial da festividade católica, é reinventado pela verve criativa de artistas da Amazônia. Pelas mãos de ilustradores como Akhácio Amawákha, Bonikta e Luan Rodrigues, Nossa Senhora de Nazaré é retratada imersa em sincretismo, em um universo de encantaria, traz mensagens de defesa do meio ambiente, denuncia tensões sociais, revela o protagonismo caboclo e a luta de minorias.
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Bonikta, Akhácio Amawákha e Luan Rodrigues: estética amazônica, suas mitologias e tensões socioambientais permeiam a criação dos artistas paraenses
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“Através da arte, busco mostrar a representatividade do povo amazônico, trazendo vivências pessoais e coletivas, criando imagens oníricas para falar de contextos da nossa contemporaneidade, que me atravessam como cidadão e artista. Busco representar os corpos LGBTQIAPN+ da Amazônia, atentar a sociedade sobre as crises climáticas, poluição dos rios e desmatamento, ora escancarando essas problemáticas, ora enaltecendo a Amazônia em pé, além de falar da espiritualidade, ancestralidade e retomada indígena através da pintura”, diz Akhácio.
O cartaz do Círio é uma tradição que começa em 1909, mas só na década de 1970 que o pôster se tornou um dos principais símbolos da festividade nazarena. Atualmente, cerca de 900 mil exemplares são distribuídos aos fiéis, que com ele enfeitam suas casas em outubro.
Cartaz do Círio é uma tradição que começa em 1909 e se populariza na década de 1970
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“O Círio está no DNA de todo paraense, sendo católico ou não, sendo cristão ou não. E acho que todo artista do Pará que trabalha criação pensa um dia em fazer um pôster do Círio. Sempre gostei muito do cartaz do Círio. Certa vez fui a uma exposição e haviam exemplares dos cartazes antigos. Eu achei incrível o modo como eles resolviam a comunicação visual através da diagramação tradicional daquela época, usando as letras e as estruturas de postal, com referências gráficas da França”, comenta Luan Rodrigues. “Cada vez mais, os artistas estão tendo a liberdade de fazer sua versão do cartaz, e isso é muito enriquecedor”.
Akhácio Amawákha retrata Nossa Senhora com traços caboclos, em aparição sobre os rios ao povo ribeirinho
Akhácio Amawákha
Rainha das águas: de Nossa Senhora e Oxum
Filho de pais artesãos, nascido em Capanema, no nordeste do Pará, o multiartista queer Akhácio Amawákha trabalha com arquitetura, cenografia, fotografia, design, moda e artes visuais, mas conta que é na pintura onde deposita dedicação e foco.
“Minhas obras trazem elementos figurativos que criam dualidades onde os opostos ao mesmo tempo que colidem, se somam e criam esse imaginário amazônico potente, como: a tecnologia ancestral e a tecnologia digital, a fartura e a escassez, o documental e o onírico, a infância e o fim da vida, a vida terrestre e a vida aquática, a encantaria e a cura física”.
De suas experimentações, surge, em 2015, a sua primeira versão autoral do cartaz do Círio, usando técnicas como o pixo e o rabisco em uma superfície plástica. A proposta foi sendo apurada, até chegar ao formato final, lançado este ano. A obra “Rainha da Amazônia” enaltece a mulher ribeirinha, a mãe ancestral, as sereias e os pescadores devotos e encantados. No cartaz, Nossa Senhora aparece gigante, surgida de um também imenso rio, numa aparição para dois ribeirinhos que, de dentro de canoas, a olham estupefatos.
Akhácio conta que a inspiração que o levou a pintar a santa nessa perspectiva foi a cena de quando os pescadores acham a imagem da padroeira nas redes de pesca, do fundo do rio e de onde toda a manifestação cultural e religiosa que é o Círio nasceu, há 231 anos. De acordo com a lenda, o caboclo Plácido encontrou uma pequena imagem de Nossa Senhora às margens do Igarapé Murutucu, que corria pela atual travessa 14 de Março, onde hoje ficam os fundos da Basílica Santuário de Nossa Senhora de Nazaré, em Belém.
“Como o Círio é uma grande manifestação que rompe as barreiras da intolerância religioso e mostra como o sincretismo religioso se mostra no nosso território, nesse olhar quis trazer uma Nossa Senhora também com elementos que lembrem a Rainha das águas doces, Oxum, entidade dos rios nas religiões de matriz africana”, diz o artista.
A padroeira aparece envolta em manto de penas, referência ao manto tupinambá, tem o corpo tatuado por grafismo marajoara e segura um facão: força e resistência na Amazônia
Caio Aguiar
Matriarca cabana
Também do interior do Pará, Caio Aguiar, a Bonikta, é natural de Ourém, região nordeste do Pará onde ocorre um dos Círios mais tradicionais da Amazônia. Ele começou a ilustrar em 2006, com grafite, lambe-lambe e pixo. Em 2017, produz a primeira versão de cartaz do Círio, a convite da Galeria Azimute, de Belém.
“Foi a primeira vez que ilustrei Nossa Senhora, que tem um poder simbólico muito grande na região norte, na Amazônia e principalmente no Pará, não só em Belém, mas nos interiores também, Desde muito pequeno, sempre estive presente no Círio, minha família tem muito dessa fé. É uma imagem, é uma fé que me atravessa de uma forma muito poderosa, de uma forma muito afetuosa”, relembra.
Nas criações de Bonikta, Nazinha aparece cercada de elementos do imaginário amazônico: grafismos e natureza, com referências indígenas, um manto cheio de folhas, cocar e brincos de penas que surgem para dessacralizar a imagem da padroeira da simbologia da igreja católica.
“Percebo que Nossa Senhora de Nazaré não é uma uma imagem que é de uma religião, mas uma imagem do povo. As pessoas vão pras ruas pra demonstrar sua devoção. Nossa Senhora está para além dessa representação cristã ocidental. Para mim, é como um amuleto, uma proteção poder representar uma imagem que tem essa ligação espiritual”, pontua.
No cartaz deste ano, Bonikta dá forma a uma Nossa Senhora envolta em um manto vermelho feito de penas, referência ao manto tupinambá. A padroeira segura um facão nas mãos, e seu bebê de colo carrega um maracá nas mãos. São signos que remetem à Cabanagem, uma das mais importantes – e sangrentas – revoltas da História do Brasil.
A rebelião popular ocorreu em Belém, entre 1835 e 1840, motivada pela extrema pobreza, fome e doenças que afetavam a população, e o abandono político após a Independência do Brasil. Os índios, mestiços e pobres analfabetos que viviam amontoados em cabanas de barro à beira dos rios eram explorados como mão de obra em forma de semiescravidão na província. Símbolo de resistência e luta popular, a Cabanagem foi a primeira revolução na qual o povo tomou o poder no Brasil.
“A imagem que eu criei para esse ano é uma Nossa Senhora que traz a sua cria no colo e segura um facão na mão pra proteger. Ela está no front. Minha ilustração traz essa questão política também, a representatividade de uma região, um povo que até hoje resiste a um apagamento, à precaridade, a diversas violências. Homenageia um momento histórico da nossa região e que se perpetua até hoje”, diz Bonikta.
Tecnologia no cartaz do Círio
Círio de Nazaré: Realidade aumentada anima cartaz do Círio.
Luan Rodrigues / Arquivo Pessoal
Combinando digital e analógico, a arte de Luan Rodrigues para o Círio traz uma Nossa Senhora ambientada na floresta, e que ganha movimento com o uso da realidade aumentada: quando vista por meio do celular, o cartaz ganha movimento e visualidade 3D.
“Quero desafiar os estereótipos e narrativas eurocêntricas que distorcem a percepção da Amazônia, valorizar a identidade, as tradições dos povos amazônicos. Acho que tem uma intenção política também de desafiar esse olhar colonizado que obscurece as complexidades culturais e ambientais que a gente enfrenta aqui. Quero que as pessoas vejam a Amazônia como ela é. É pura resistência porque fazer arte digital aqui é loucura”, diz.
Natural de Cametá, também na região nordeste do Pará e com um Círio tradicional na região, Luan trabalha com arte desde 2007, no audiovisual, e passou a se dedicar à ilustração em 2017, com o muralismo, e projeções animadas em vídeo mapping.
Em 2022, produz o seu primeiro pôster para o Círio. “Fiz justamente explorando essa comunicação visual, tentando trazer os elementos, as texturas, as cores, os signos visuais aqui que a gente tem na Amazônia junto com a Santinha, a Nazica, fazendo essa distribuição meio tradicional inspirado nesses posters antigos”, conta.
Luan diz que a arte é uma ferramenta potente para falar sobre a defesa da Amazônia e seus povos, e denunciar a exploração e violências sofridas pelo território. “O que me move a criar é uma profunda conexão com a Amazônia. Tentando visualizar essa riqueza, nesse ambiente que é tão exuberante, assim como as culturas dos povos que por aqui habitam. Testemunhei inúmeras ameaças que essa Amazônia vem enfrentando, como desmatamento, incêndios nessa região tão explorada e também tão vital pro nosso planeta”, relata. “
Fazer arte nos dias de hoje estando aqui é meio uma um sinônimo de luta pela preservação ambiental e pela democracia. Arte é a maior voz que a gente tem aqui hoje”.
Serviço
Para conhecer mais sobre o trabalhos dos artistas e encomendar obras, acesse:
Akhácio Amawákha @akha.ar
Bonikta @bonikta
Luan Rodrigues @kambo.art

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